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Chil Rajchman (à esq.), ao lado do irmão, em foto tirada provavelmente antes da Segunda Guerra Mundial | Divulgação
Chil Rajchman (à esq.), ao lado do irmão, em foto tirada provavelmente antes da Segunda Guerra Mundial| Foto: Divulgação

"Ao chegarmos a esse campo abominável, somos recebidos com vergastadas, que chovem sem trégua. Nossa atividade consiste em recolher areia de um monte e carregá-la em carrinhos de mão para outro monte. Quase desmaio nos primeiros minutos. Ainda não sei o que carrego nem para onde carrego. Mas quando chego ao lugar onde esvaziamos os carrinhos de mão, constato que despejamos areia sobre corpos que foram atirados em valas. Não consigo atinar direito com aquilo, pois não nos dão um segundo de trégua. Temos que encher rapidamente os carrinhos de mão, correr para despejar a areia sobre as vítimas e voltar sem nos determos. Suamos. Tiro meu casaco, mas isso não muda nada.Os assassinos estão em toda parte, rodopiam longos chicotes acima de nossas cabeças. Gasto minhas últimas forças. Não me aguento mais de pé."

Trecho de Eu Sou o Último Judeu, de Chil Rajchman, traduzido por André Telles.

O relato de Chil Rajchman, Eu Sou o Último Judeu, descreve a penúria vivida pelo autor no campo de concentração de Treblinka a partir de 1942 e ao longo de um ano. É um livro relativamente curto, mas dificílimo de ler. De modo paradoxal, a escrita é fluida e sentimos como se Rajchman estivesse nos contando, na mesa de um café, as barbaridades que encarou para sobreviver aos nazistas. Mas as informações são duras e beiram o surreal.

Quando você acha que está mais ou menos resistente às memórias desse polonês que escapou para o Uruguai, onde morreu em 2004, surge o caderno de fotos. As imagens estão ali para te lembrar que Chil Rajchman não é uma ficção, que o oficial nazista famoso pelo cachorro que o acompanhava – usado para aterrorizar os prisioneiros – não é uma ficção. O autor experimentou situações absurdas e as narrou pouco depois de escapar, ainda nos anos 1940. Ele teve dificuldade de retornar às lembranças daqueles meses e demorou para mostrar o livro para o irmão. Escrito em iídiche, só foi publicado na França no ano passado.

Parte dos horrores é conhecida. Os nazistas tratavam os judeus como insetos. No inverno, obrigava-os a tirar as roupas num frio de 20º C negativos só para que implorassem para entrar nas câmaras de gás, onde estava quente. Ninguém sabia que morreriam pela ação de um motor a diesel que produzia gás carbônico para liquidar algo entre 400 e 700 pessoas de uma vez. Em Treblinka, dependendo do tamanho da câmara, a asfixia levava de 20 a 45 minutos.

Os alemães pareciam chicotear e atirar com desenvoltura. As provações no campo eram tantas que as câmaras de gás poderiam ser encaradas como um prêmio. Muitos eram poupados – eram os judeus recrutados para carregar corpos, arrancar dentes de ouro, cavar buracos e enterrar cadáveres, grupo do qual fez parte Rajchman. Quem se negava a obedecer ordens, era morto. Quem não era morto, acabava se suicidando. Os que sobreviviam pensavam em escapar. A certa altura, seguiam em pé porque não tinham mais condições de pensar nem de reagir. Permaneciam vivos e apáticos – ou aguentavam tudo porque estavam apáticos. Conseguiram desenvolver cascas grossas e passar por cima do que acontecia à sua volta.

Num cenário assim, é fácil compreender os suicidas. Um pai e um filho se enforcaram e, como tinham apenas um cinto, combinaram que o pai se mataria antes e o filho o faria em seguida. Como eles, muitos deram cabo da própria vida. O inferno retratado por Rajchman foi descrito por outros sobreviventes – o que nunca diminui o impacto das cenas narradas –, mas há uma característica peculiar ao livro do polonês.

Ele fala de várias situações em que os prisioneiros procuraram revidar, outras em que se recusavam a acatar as ordens dos nazistas. Numa conversa com um médico testemunhada por Rajchman, um oficial alemão reclama da insolência dos prisioneiros, indignado porque eles se recusaram a caminhar cabisbaixos em direção às câmaras de gás. Essas histórias não têm nada a ver com a ideia de que os judeus teriam marchado para a morte como carneiros para o matadouro. Houve muitos conflitos e os judeus enfrentavam os nazistas, obrigando os alemães a fuzilá-los. Em certos casos, mesmo com as mãos nuas, os prisioneiros chegaram a ferir seus carrascos.

Rajchman e outros sobreviventes tiveram de se desumanizar para resistir à Treblinka e escapar. Eles deixaram de enxergar os cadáveres. Depois de um ano, organizaram um levante, renderam guardas e fugiram. O autor perambulou por dois meses e ainda ficou preso num bunker até janeiro de 1945.

"Sim, sobrevivi e sou livre", escreve Rajchman, "mas para quê?, pergunto-me com frequência. Para contar o assassinato de milhões de vítimas inocentes, para dar testemunho de um sangue inocente, derramado por assassinos".

Eu Sou o Último Judeu foi editado somente depois da morte de Rajchman (1914-2004), graças ao interesse de um amigo, Raoul Velazco, que guardou os originais. É melancólico pensar que o sobrevivente do Holocausto que testemunhou contra vários oficiais alemães casou, teve três filhos e viveu até os 90 anos no Uruguai agarrado à ideia de escrever, de dar seu testemunho sobre o que viu em Treblinka. Mas não viveu para ver o testemunho publicado. GGGG

Serviço

Eu Sou o Último Judeu, de Chil Rajchman. Zahar, 152 págs., R$ 28.

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