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Sherlock Holmes

Carlo Ginzburg nasceu em Turim, na Itália, em 1939. Foi professor de História Moderna na Universidade da Califórnia, em Los Angeles, e, desde 2006, leciona na Escola Normal Superior, em Pisa.

O historiador, discípulo confesso de Sherlock Holmes, fez de suas investigações a matéria-prima para diversos livros, publicados no Brasil pela Companhia das Letras:

• O Queijo e os Vermes (1987)

• Os Andarilhos do Bem (1988)

• Mitos, Emblemas, Sinais (1989)

• História Noturna (1991)

• Olhos de Madeira (2001)

• Relações de Força (2002)

• Nenhuma Ilha É uma Ilha (2004)

• O Fio e os Rastros (2007)

Todo fragmento ficcional pode ser usado como uma evidência histórica. Ao contrário do que possa parecer, isso não desfaz os limites entre realidade e ficção. Essa é a uma das questões examinadas pelo historiador italiano Carlo Ginzburg em seu mais novo livro, O Fio e os Rastros, recém-lançado pela Companhia das Letras, em que o autor revisa as possibilidades de troca entre a narrativa histórica e a literatura inventiva.

É também uma das idéias que o pioneiro da micro-história (abordagem centrada na generalização de estudos de caso) defendeu na entrevista coletiva concedida durante a 12.ª Jornada Literária de Passo Fundo (RS), encerrada semana passada.

Como o senhor se posiciona frente à relação entre a História e Literatura, uma vez que grande parte de suas obras são caracterizadas pelo aproveitamento da literatura como fonte histórica? Antes de tudo, eu escrevo sobre História com uma consciência literária. Isso está relacionado à minha bagagem familiar, minha mãe era novelista, minha experiência é como leitor. Quando comecei a trabalhar com os julgamentos da inquisição (para O Queijo e os Vermes), eu estava consciente do potencial narrativo que havia na própria fonte. No entanto, existe uma tendência de ofuscar os limites entre História e ficção. Eu reagi contra essa tendência porque era perigosa, com implicações políticas, intelectuais e morais. Então decidi lutar contra essa abordagem.

Contra os historiadores pós-modernistas?Sim, porque obviamente essa idéia de que é possível traçar uma distinção entre ficção e História tinha implicações céticas: tudo seria ficção. A maior parte do meu trabalho nos últimos 20 anos é dedicada a essa luta intelectual. Minha estratégia foi diferente, me concentrei em casos concretos que permitem explorar as relações entre ficção e História. A hipótese geral é a seguinte: essa relação tem sido sempre de competição – entre ficção e História, pelo conhecimento e descrição da verdade. Essa competição implica trocas mútuas, híbridos e desafios.

Em que momento a ficção passa a ser prejudicial à História?Pode ser extremamente prejudicial ou útil, depende da abordagem. O caso mais óbvio é usar um romance como evidência. O historiador pode ler o romance de maneira consciente e literal, esquecendo a distinção entre o nível literário e o metafórico. Há uma anedota sobre o antigo rei da Itália, Vitório Emanuel III, que, por causa de suas funções, era obrigado a ir a exposições. Diante da pintura de uma paisagem de aldeia, ele perguntou: "Quantos habitantes?" Isso é a questão típica da abordagem literal.

Ao contrário, é possível uma abordagem muito sofisticada. Um discussão em Paris, em 1657, é o primeiro exemplo disso. O crítico francês Jon Chaplin lia o livro Lancelot, quando um crítico amigo lhe perguntou: Por que você está lendo esse tipo de lixo? Chaplin se defendeu dizendo que Lancelot é comparável a Homero, pois nos conta algo importante sobre uma sociedade. E surge esse argumento: até a ficção, para ser verossímil, deve se referir a instituições e comportamentos historicamente verídicos. É algo que não é controlado pelo escritor, mas faz parte do ato de comunicação. No romance, tudo é ficção, mas há algo que aponta para o contexto histórico e, portanto, pode ser usado por historiadores como evidência.

E qual a posição da imprensa como fonte histórica?Eu não consigo imaginar qualquer fragmento da realidade, ficcional ou não, que não possa ser usado como evidência histórica. O problema é como lidar com esse tipo de evidência. Qualquer evidência histórica tem dois lados. Um é entender as condições de produção – a posição política do jornal e como se relaciona com seus concorrentes, por exemplo. O outro é o potencial referencial do artigo. O que os céticos diriam frente a isso é que não há potencial referencial. Os positivistas extremamente ingênuos perguntariam: Será que o autor desse artigo é confiável? Temos que reconstruir o contexto, as relações entre o jornal, o evento e a imprensa. Não existem documentos neutros, nem um inventário é um documento neutro. Também não há documentos totalmente isentos de referência, incluindo os mais ficcionais.

Vivemos em uma espécie de ressaca pós-moderna. Como o senhor vê o papel do intelectual e do conhecimento histórico no mundo contemporâneo? Estou absolutamente convencido de que historiadores podem desempenhar um papel importante. Tenho a impressão, mas posso estar errado, de que o pós-modernismo já não está tão em moda. Mas, mesmo que não seja tão forte, devemos tentar lidar com as questões por trás do pós-modernismo. Se for descrever a importância do historiador, seria lidar com o verdadeiro, o falso e o ficcional, porque é nesse mundo que nós vivemos. Um mundo em que elementos fictícios desempenham papel muito importante, se pensarmos nas discussões sobre realidade virtual. Temos que identificar a verdade não como algo dado previamente, mas como o resultado dessa busca.

Quando o senhor lê ficção, é sempre com o olhar do historiador?Sim, com certeza. A leitura é como um guarda-chuva cobrindo realidades diferentes. Existe a leitura diagonal, que é rápida. Costumava iniciar as aulas na Universidade de Los Angeles lembrando a experiência italiana de um grupo a favor da slow food, oposta ao fast food. Eu queria ensinar slow reading (leitura lenta). Imagine o leitor lendo uma novela rapidamente, preso pelo enredo. Ou ele pode voltar e reler, pular de uma página para outra, concentrar-se em uma palavra, avançar e recuar. Isso é um prazer? Eu diria que sim (risos).

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