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Os mais predispostos a fazer leituras politicamente corretas, senão moralistas, de obras de arte vão se indignar com o teor do novo livro de Gabriel García Márquez, Memória de Minhas Putas Tristes (tradução de Eric Nepomuceno; Record; 128 páginas). O escritor colombiano, vencedor do prêmio Nobel de Literatura de 1982, conta a história de um velho jornalista que, às vésperas de completar 90 anos, tem um desejo único: fazer amor com uma menina virgem de 14 anos. E o encontro deve acontecer em um prostíbulo, com data e horário marcados.

Em tempos nos quais o substantivo pedofilia parece estar onipresente na mídia, das páginas policiais de revistas e jornais a telenovelas globais, a escolha de García Márquez poderia ser interpretada como temerária ou irresponsável. Limitar-se a essa interpretação rasteira e simplista, todavia, seria algo próximo de reduzir uma obra da estatura de O Retrato de Dorian Gray a uma sinopse inócua como "o relato de um homem vaidoso que se recusa a envelhecer". Embora esse resumo não seja desprovido de verdade, é nada diante da complexidade e da maestria do clássico de Oscar Wilde.

Memória de Minhas Putas Tristes não é, portanto, um livro a respeito da pedofilia. É, sobretudo, a reflexão de um homem solitário sobre a finitude. Ao perceber-se às vésperas da morte, o protagonista da novela de García Márquez propõe-se o desafio de encerrar sua história com um capricho, um gosto de prazer nos lábios. É como se fosse o derradeiro desejo concedido a um homem às vésperas da execução anunciada.

Vale aqui contar um pouco sobre esse homem velho. Crítico musical e cronista semanal de um jornal colombiano, o personagem, em determinado ponto da vida, optou por uma existência sem sobressaltos. Desistiu, momentos antes da cerimônia, de um casamento sem amor, deixando a noiva desolada no altar. Isolou-se no casarão de sua família e dedicou-se a sorver cada dia sem muita pressa – ou ambição. Como recebe pouco por seus textos, sobrevive dilapidando, pouco a pouco, o limitado patrimônio que herdou dos pais. Seu único prazer, além da leitura e da música, é saciar seus desejos em encontros furtivos com uma sucessão de prostitutas, empregadas domésticas e mulheres sem nome. Gozos rápidos, sem resquícios de paixão ou qualquer expectativa romântica. Não quer compromisso algum – nem consigo mesmo.

Ao chegar ao nonagésimo aniversário, o programa encomendado com uma jovem que sobrevive de pregar botões em uma fábrica é um arremate para uma existência que ele mesmo julga irrelevante. Mas o encontro revela-se, ao invés de um fim, o começo de uma nova história. De amor.

História real

É impossível não pensar que Memória de Minhas Putas Tristes seja ao menos algo autobiográfico. Gabo, como o autor de Cem Anos de Solidão é chamado pelos mais íntimos, não é tão velho quanto seu protagonista. Tem 77 anos. Ainda assim, percebe-se nas entrelinhas que a angústia e o desencanto do personagem diante do passar dos dias podem traduzir, ao menos em parte, a visão que o escritor possa ter a respeito da senilidade.

Afastado da ficção há alguns anos – a última década de seus escritos foi dedicada a reportagens e relatos autobiográficos, como Viver para Contar (2002) –, García Márquez não parece ter escolhido o tema velhice ao mero acaso. O esforço de traduzir em páginas suas memórias mais remotas talvez o tenham conduzido a uma inevitável elocubração sobre as implicações do fim dessa jornada, não muito distante.

Há no livro ecos de outras obras literárias. A mais óbvia e de domínio público seria Lolita, do russo Vladimir Nabokov, não fosse por um detalhe: Delgadina, nome com o qual apelida a menina-mulher com quem se deita e cuja identidade desconhece, é uma sombra. Alquebrada pelo trabalho exaustivo, antes dos encontros ela é sempre entorpecida pela marafona Rosa Cabarcas. A cafetina, já em seus 80 e tantos anos, é velha conhecida do personagem e o conhece ao ponto de com ele trocar alfinetadas picantes, em nome de lembranças eróticas perdidas no tempo. São momentos particularmente saborosos do livro.

Há, também, quem diga que Márquez teria "copiado" o mote de sua novela de A Casa das Belas Adormecidas, romance do japonês Yasumari Kawabata, recém-lançado no Brasil, pela Estação Liberdade. Bobagem. Ainda que haja uma aproximação temática entre as duas obras – que pode ou não ter sido intencional –, o universo de sensações, odores e temperaturas contido em Memória de Minhas Putas Tristes tem muito mais em comum com outros livros do autor colombiano, como O Amor nos Tempos do Cólera (1988), que também aborda a possibilidade do amor e da sexualidade na velhice, talvez de maneira mais romântica.

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