Um dos principais entraves ao fim da disputa pela terra na Palestina, que em janeiro levou à morte de 1.300 palestinos e 13 israelenses e à destruição de boa parte da Faixa de Gaza, é o apelo à religião: os dois povos não poderiam dividir o mesmo céu porque têm crenças diferentes. Mas, se o credo dos dois povos fosse completamente distinto, talvez a discussão territorial fosse levada para o campo político no qual teria mais chances de ser resolvida, de acordo com analistas. Porém, como eles reivindicam raízes comuns, incluindo o patriarca (Abraão ou Ibrahim), são as diferenças que acabam sob os holofotes. E fica difícil esquecê-las.
O judaísmo e o islamismo foram ambos responsáveis pela unificação dos povos que professam essas crenças. No caso dos hebreus, o surgimento do povo coincide com seu chamado sagrado, a aliança com Deus. Morando em Harã, na Mesopotâmia, o patriarca Abraão ouviu do Senhor o pedido para deixar seus parentes e partir rumo a uma terra que Deus lhe daria. Já em Canaã (Palestina), recebe a promessa de que sua descendência herdaria aquela terra para sempre. Só que não tinha filhos.
Para "ajudar" o cumprimento do destino sagrado, a esposa de Abraão, Sara, lhe oferece uma serva egípcia, Hagar, como concubina, para que ela engravide e dê um filho a Abraão. Esse costume era praticado à época, sendo previsto pelo código jurídico de Hamurabi, da Mesopotâmia. Ela engravida e gera Ismael, tido como patriarca dos povos árabes.
Mas o desprendimento de Sara não impede que ela sinta ciúmes e seja desprezada pela serva, de forma que as matriarcas inauguram também o conflito entre os povos.
A história é relatada no livro Gênesis da Bíblia hebraica, ou Torá (os cinco primeiros livros da Bíblia cristã), revelada a Moisés por volta do século 13 A.C., de acordo com a tradição hebraica.
De forma semelhante, o islamismo foi responsável pela unificação das tribos árabes. E, num tempo espantosamente rápido, trouxe unidade por meio da religião. "Deixa perplexo que no século 7, em questão de décadas ou talvez um século, Maomé desenvolve um bloco tão coeso que junta diferentes tribos arábicas a partir da insistência na adoração de um único Deus", diz o professor da Escola Dominicana de Teologia de São Paulo, Renatus Porath.
Nascido em uma tribo prestigiada de Meca em 570 D.C., o profeta teria recebido de Deus a revelação contida hoje no Alcorão. "Maomé entende que a geração pós-Torá teria se afastado da compreensão original", diz Porath daí Deus ter revelado uma versão "melhorada".
Os dois povos teriam se separado em inimizade. O texto sagrado dos judeus relata que, após a desavença entre as matriarcas, e mesmo tendo já dado à luz Isaque, Sara pede a Abraão que expulse Hagar, algo com que o próprio Deus concorda: "Disse Deus a Abraão: Não te pareça mal aos teus olhos acerca do moço e acerca da tua serva; em tudo o que Sara te diz, ouve a sua voz; porque em Isaque será chamada a tua descendência. Mas também do filho desta serva farei uma nação, porquanto é tua descendência." (Gênesis 21:12-13)
O relato prossegue dizendo que o Senhor cuidou de mãe e filho no deserto. Já no Alcorão a ideia da separação parte de Deus mesmo, e o próprio Abraão os conduz à região onde hoje está a Arábia Saudita. Hagar e Ismael são então acolhidos por beduínos árabes, que se estabelecem ali e formam a cidade de Meca. Abraão pede que Deus os proteja: "Ó, Senhor nosso, estabeleci parte da minha descendência em um vale inculto perto da Tua Sagrada Casa para que, ó Senhor nosso, observem a oração; faze com que o coração de alguns homens os apreciem. E agracia-os com os frutos, a fim de que Te agradeçam" (Sura 14,37).
Abraão teria ido diversas vezes ao encontro do filho, educando-o na crença do Deus único. Em uma dessas visitas, Deus pede que pai e filho reconstruam um templo criado por Adão a mesquita de Meca. A Casa Sagrada é a Kaaba, pedra preta localizada na mesquita de Meca, para onde todo muçulmano que tiver condições deve peregrinar uma vez na vida.
Outra contradição envolvendo os filhos: o sacrifício de Isaque, retratado diversas vezes nas artes plásticas e ordenado por Deus como prova de fé (ele não permite que Abraão cumpra a imolação), no Alcorão envolve Ismael.
Na Bíblia, Ismael aparece novamente no capítulo 25 do Gênesis, para enterrar Abraão ao lado do irmão Isaque, 13 anos mais moço.
Monoteísmo
Para o Islã, Abraão é tido como o primeiro muçulmano, o que é enfatizado na Sura 3, 67: "Abraão jamais foi judeu ou cristão; foi, outrossim, monoteísta, submisso (significado da palavra muçulmano), e nunca se contou entre os idólatras".
Ambos os textos sagrados o retratam como alguém que dividiu águas na região entre o politeísmo (adoração a vários deuses) e o monoteísmo. Na Torá, isso acontece quando Abraão ouve a voz de Deus pedindo que ande na sua presença; no Alcorão, essa identidade já nasce com o menino Abraão, que entra em conflito com a família por causa das múltiplas estátuas da casa.
Mesmo quando o conteúdo é igual, existem diferenças de linguagem, como aponta o jornalista Ali Kamel em seu livro Sobre o Islã, quando fala do relato da desobediência do homem a Deus: "Enquanto no Gênesis a preferência é por uma linguagem mais metafórica, usando-se a serpente como aquela que desviou o primeiro casal da obediência a Deus, no Alcorão a história é narrada de uma forma mais direta, com igual resultado."
Ele sugere um olhar atento à intersecção entre as duas religiões: "Quando o personagem é Abraão, há mais comunhão entre as três religiões (inclui aqui o cristianismo, derivado do judaísmo), do que desacordos".




