Retrato da solidão a 40 °C

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Mick Kelly é uma prima distante de Holden Caulfield. Distante no tempo e no espaço, mas próxima, quase gêmea, no que trouxe para a literatura norte-americana. Impos-sível não lembrar de O Apanhador no Campo de Centeio ao ler O Coração É um Caçador Solitário. Não somente porque nos dois livros o protagonista é um adolescente cheio de angústia e curiosidade, mas porque os dois autores conseguem fazer o leitor encarnar em um personagem que é quase uma criança e enxergar o mundo pelos olhos dele.

O mundo retratado é que muda. Carson McCullers retrata o ambiente em que viveu: o Sul dos Estados Unidos, na década de 30, onde negros e brancos não se misturavam e o isolamento e abandono em que os primeiros viviam era considerado algo normal. Era um período de guerra, em que questionamentos políticos não eram bem-vindos porque um perigo pairava sobre a nação. E de sacrifícios materiais. O Coração É um Caçador Solitário foi publicado em 1940.

J.D. Salinger publicou O Apanhador no Campo de Centeio 11 anos depois. A Segunda Guerra Mundial havia acabado e os Estados Unidos já desfrutavam das vantagens de ter sido o grande vencedor. Nova Iorque era um lugar rico e animado, perfeito para jovens curiosos como Holden Caulfield. As angústias de quem viu a Guerra não combinavam com aquele ambiente dinâmico e moderno. Angústia nenhuma combinava com o próspero mundo americano dos anos 50. Mas Salinger tinha essa angústia e achou um personagem que podia carregá-la sem parecer louco, que podia se espantar com o mundo a sua volta sem parecer piegas – um adolescente.

Salinger não era mais um adolescente quando deu à luz seu Holden Caulfield (tinha 32 anos). Carson McCullers era uma mocinha de 23 anos quando saiu seu primeiro e mais importante livro. Há cinco, tinha deixado sua cidadezinha na Geórgia e se mandado para Nova Iorque, disposta a ser escritora. Já tinha passado por maus pedaços: um reumatismo que a fez desistir de ser pianista e um casamento que, tudo indica, foi uma seqüência de desencontros traumáticos – os dois seriam bissexuais, descasaram, casaram de novo e, a certa altura, ele tentou convencê-la a cometer duplo suicídio. Com sérios problemas de saúde, ela morreu em 1967, aos 50 anos (Salinger, que é dois anos mais velho, está vivo e bem escondido na Nova Inglaterra).

Mudos

O Coração é um Caçador Solitário é um livro respeitado e popular nos Estados Unidos. Se não é tão popular quanto O Apanhador, provavelmente é porque o ambiente em que se desenvolve sua história é bem menos charmoso. A cidadezinha de McCullers parece sempre triste, terrivelmente quente, mergulhada em um verão sem fim. Os personagens, a começar pela menina Mick Kelly, escondem suas confusões mentais, suas dúvidas, sua sexualidade por medo de não parecerem "normais". Os que se expressam não conseguem comunicar nada nem convencer ninguém (o médico negro que tenta convencer as pessoas de sua raça a se erguerem contra a humilhação, o viajante politizado que sonha em quebrar a apatia dos trabalhadores). Todos são atraídos por um ouvinte especial: o mudo, educado e gentil, que os recebe em seu quarto de pensão e ouve com infinita paciência. O mudo exerce fascínio sobre eles, que buscam alívio para suas angústias e carências naquele ouvinte tão gentil, que por não falar nada passa por sábio.

O que eles não sabem é que ninguém sofre mais que o mudo, que não consegue falar com ninguém, a não ser com seu amigo também mudo e meio maluco, que acaba internado em um manicômio. Sem o amigo e condenado a ouvir eternamente os desabafos de outros, o mudo se desespera e dá ao livro um final surpreendente.

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Serviço: O Coração É um Caçador Solitário, de Carson McCullers (Companhia das Letras, 456 págs., R$ 57).