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O historiador Thomas Cahill tem uma teoria de que os irlandeses foram os grandes responsáveis por salvar a Civilização Ocidental. Segundo a tese dele, quando Roma caiu diante dos bárbaros, o único lugar que conseguiu manter a cultura tradicional, construída desde a Grécia, foi a Irlanda. Fora do continente e livre do ataque dos bárbaros, alguns monges cristãos mantiveram seus livros e códices intactos. Mais tarde, levaram o conhecimento de volta para o resto da Europa – e assim temos hoje acesso a uma cultura que poderia ter se perdido irreversivelmente.

Se por um acaso a tese de Cahill estiver errada, mesmo assim é possível dizer que de alguns séculos para cá os habitantes da ilha têm salvado parte de nossa cultura, levando novos livros para o continente. Alguma coisa na água da Irlanda transforma seus habitantes em grandes escritores. O país, que tem menos da metade do tamanho e da população do Paraná, já deu ao mundo nomes como Jonathan Swift, George Bernard Shaw, Oscar Wilde, William Butler Yeats e James Joyce. Isso sem contar os que para eles já são segundo time – e que em muitos países seriam símbolos da cultura nacional.

Nesta semana, um dos geniozinhos de primeiro time produzidos na terra de São Patrício foi comemorado em todo o mundo novamente. Trata-se de Samuel Beckett, que, se estivesse vivo, completaria 100 anos no dia 13 deste mês. Morto em 1989, Beckett deixou como legado uma pequena coleção de romances e uma grande série de peças de teatro que, de lá para cá, influenciaram quase todo grande escritor do planeta.

"Se você faz teatro, Beckett certamente é uma referência que você não vai conseguir evitar", afirma o diretor Fernando Kinas, estudioso do teatro contemporâneo. Segundo ele, o trabalho de Beckett como dramaturgo era profundamente marcado pelo pós-guerra. "Ele dizia que havia se tornado impossível ignorar o Holocausto. Hoje, é impossível ignorar Beckett", resume.

O trabalho mais importante do escritor para o teatro foi publicado em 1951. Era Esperando Godot, provavelmente o maior clássico da dramaturgia mundial produzido no século 20. Conta a história de dois homens, Vladimir e Estragon, ou Didi e Gogo, como eles se chamam durante os diálogos, que passam as duas horas do espetáculo esperando alguém – ou algo – que nunca chega. E, embora seja nítido que esse Godot nunca virá, eles nem pensam em tomar uma iniciativa que não seja esperá-lo.

A peça foi um marco por vários motivos. A forma era inovadora: pouco realmente acontece no palco durante os dois atos. Os diálogos falam sobre nada ou algo muito parecido com isso. E o conteúdo era bastante provocador para os padrões da época. "O teatro de Beckett fala sobre a impotência da humanidade diante do mundo", afirma Kinas.

Mais tarde, já nos anos 70, Beckett se tornaria um radical da forma. Algumas peças suas já não têm nem mesmo falas. Breath (que poderia ser traduzida como Fôlego) mostra só o som de alguém inspirando o ar e soltando e alguns ruídos, com a luz baixando e subindo. Dura poucos segundos.

Mas a carreira de Beckett começou na prosa – gênero dentro do qual ele também faria uma série de inovações. Amigo pessoal de Joyce, o homem que inventou o romance moderno com seu Ulysses, em 1922, Beckett deixou uma trilogia que é a base de sua prosa: Molloy, Malone Morre e O Inominável. "No Brasil, o dramaturgo é mais conhecido, mas na Europa o Beckett romancista é considerado tão importante quanto o homem de teatro que ele foi", afirma Fábio de Souza Andrade, professor de Teoria Literária da Universidade de São Paulo (USP) e autor de uma dissertação de doutorado sobre o irlandês.

Em 1969, Beckett recebeu o prêmio Nobel de literatura pelo conjunto de sua obra O escritor, diz a lenda, teria classificado a escolha dos jurados como "uma catástofe". Mas essa foi uma das vezes em que o Nobel acertou. Depois de ter deixado de lado gente da altura de Tolstoi, Joyce e Proust, os jurados fizeram um bom trabalho ao dar o milhão de coroas suecas a Beckett. A história provaria isso com o número de escritores que hoje são facilmente identificáveis como descendentes das inovações de Beckett. Entre eles, podem-se citar Edward Albee e Harold Pinter. Só para ficar em dois dos maiores escritores do nosso tempo.

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