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Demora umas 50 páginas, mas Port Mungo, de Patrick McGrath (Tradução de Celso Nogueira. Companhia das Letras, 264 págs., R$), engrena. Não há nada errado com a narrativa. O problema é a narradora.

Gin conta a história de seu irmão, Jack Rathbone. Nascidos em uma família rica da Irlanda, cresceram com todo tipo de regalia, inclusive uma preceptora (o equivalente do início do século passado a uma professora particular). Juntos, desenvolveram o gosto pela arte. Jack tinha talento. Gin nem tanto.

O que fica claro logo no início do livro é que ela tem uma admiração pelo irmão que beira o patológico. Além de se considerar a única pessoa capaz de entendê-lo – daí não ser uma narradora das mais confiáveis. Essa foi uma escolha curiosa de McGrath. Enquanto a maioria dos escritores procura criar uma narrativa acima de qualquer suspeita, a fim de nunca trair a confiança do leitor, Port Mungo começa cheio de lacunas, incertezas e informações desencontradas. No final elas são preenchidas, resolvidas e corrigidas. Porém, o caminho a percorrer é bastante traiçoeiro.

Ainda na adolescência, Jack decide se tornar pintor. Impulsivo e cheio de vida, se dispõe a sacrificar tudo em nome dessa escolha. Ele conhece Vera Savage, também pintora, casada e já nos seus 30 anos. Completamente louco por ela, consegue conquistá-la e a convence de largar o marido para viajar com ele a Nova Iorque. A paixão esmorece e as desavenças começam semanas depois.

Quando se encantou por Vera, Jack imaginava que poderiam evoluir como artistas juntos, vivendo a pintura o tempo todo. Ao invés disso, descobriu que Vera tinha um talento nato e se dedicava muito pouco a desenvolvê-lo – parecia até fugir dele. Ela vivia a um passo do alcoolismo, preferindo bares e amigos no lugar de uma rotina de trabalho.

Autor de Spider, adaptado ao cinema por David Cronenberg, McGrath conduz seu enredo como se fosse um romance policial. Há uma morte, um mistério e dois suspeitos. "Não há mistérios, apenas pessoas que escondem as coisas; apenas segredos", acredita Gin. A história melhora na medida em que a narradora faz pequenos flashforwards – o que, no cinema, é o oposto de flashback. Os saltos temporais revelam que ela, depois da morte de Jack, passou a viver com Vera, podendo enfim confrontar a versão dos fatos dada pelo irmão. Também à moda de um romance policial, o final pode surpreender.

Um dos feitos de McGrath é a intensidade com que retrata os personagens centrais e a relação entre eles. Ele consegue delinear o artista, com seus métodos, rotina, obsessões e pensamentos. A formação em psiquiatria parece ter ajudado na criação de figuras complexas e na descrição de neuroses e paranóias.

Jack é apresentado como um "Gauguin redivivo", em referência ao pintor francês. Intimidado pelos amigos de Vera e ansioso por desenvolver sua arte, ele mais uma vez a convence de mudar. Seguem para Havana, Cuba, mas deixam a ilha às vésperas de Fidel Castro chegar ao poder. Meio por acaso, terminam em Port Mungo, "uma cidade que fora próspera, na beira do rio, agora decadente, abafada, no meio do manguezal no golfo de Honduras".

Eles se estabelecem em uma construção precária de madeira, onde se guardavam bananas, e montam o ateliê. "O grande problema dos trópicos era o tédio, e que talvez Jack, com sua dedicação obsessiva ao trabalho, o resolvera. Para outros, porém (...), o trabalho havia muito perdera o seu encanto. O tempo era o grande problema, e a devassidão, a solução mais corriqueira." Essa é a explicação de Gin para os problemas enfrentados pelo irmão. Isso, até conversar com Vera – seu nome deriva do latim veritas, ou verdade. Não por acaso.

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