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O espetáculo Memória, em cartaz no Guairinha até 24 de setembro, começa como aqueles livros de introdução interminável, que criam uma certa má vontade no leitor. Por trás de uma lufada de gelo seco, surge um ator após o outro, como se estivessem em um outro mundo. Eles interpretam as palavras do defunto-narrador de Memórias Póstumas de Brás Cubas, obra mais radical de Machado de Assis.

Resista a este longo prólogo, que contraria o que o próprio Machado afirmou na apresentação deste primeiro exemplar do realismo no Brasil: "O melhor prólogo é o que contém menos coisas". Após dez ou 15 minutos, os atores passam a se alternar de forma mais dinâmica. E o caro leitor de Machado de Assis começa, enfim, a se deliciar com o cinismo das palavras narradas do além-túmulo. Muito bem incorporadas pelo atores, esses dizeres ganham entonações mais agressivas e atualidade.

Aliás, refletir sobre o tempo contemporâneo é a intenção do diretor carioca Moacir Chaves. Ele sabe que, mesmo tendo sido escrito e ambientado no século 19, Memórias Póstumas de Brás Cubas, assim como quase toda a obra de Machado, propõe questionamentos universais que não perdem significado quando transferidos para os dias de hoje. Brás Cubas é um pessimista que, na morte, busca o sentido da vida a partir de sua própria experiência terrena. Ele analisa, com uma boa dose de acidez, temáticas como o amor, a escravidão, o casamento, a família. Como o narrador do livro, os atores encaram a platéia e, com a mesma carga de acidez, dialogam com ela. "Eu cínico, alma sensível?", provoca uma das atrizes.

A peça não tem personagens nem enredo e, como no livro de Machado de Assis, a narrativa é fragmentada e não-linear. O cenário, despojado e atemporal, é composto por três beliches de ferro, onde os atores se empoleiram enquanto escutam a narrativa da vez. Ali, eles gargalham, grunhem e cantam, contrariando ou reafirmando os dizeres de Brás Cubas.

Memória às vezes peca pelo excesso – uma das atrizes finge se masturbar como um homem e em alguns momentos os atores surtam com histerismo exagerado, coisas que o Brás Cubas de Machado dificilmente faria. Mas isso é parte de um dos méritos da peça, que é ousar como ousa o escritor, sem no entanto, preocupar-se em dramatizá-lo. Para dar conta do desafio de levar Memória Póstumas ao palco, o elenco foi orientado a atuar exatamente como o personagem Brás Cubas. Sendo morto, ele não tem nada a perder e, por isso, diz o que pensa. Assim também fazem os atores, que abstraem-se do olhar do platéia e, com ótimas interpretações, dão novas possibilidades às palavras do narrador machadiano.

Só pelas palavras de Brás Cubas, a peça já se salvaria. Mas, seu valor está justamente em ir além delas, lançando olhares críticos à sociedade atual que os atores deixam transparecer nas entrelinhas de sua interpretação. GGG1/2

Serviço: Memória. Guairinha (R. XV de Novembro, s/n.º), (41) 3315-0979. Direção de Moacir Chaves. De quinta-feira a sábado, às 21 horas, e domingo, às 19 horas. Ingressos a R$ 10 e R$ 5 (meia).

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