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De estrela mirim a embaixadora

Shirley Temple, às vésperas de completar 80 anos, foi a mais popular atriz mirim de toda a história do cinema. Começou a fazer filmes aos 3 anos e logo atingiu o superestrelato. Ela não apenas atuava, mas também cantava e dançava antes dos 5 anos. Seus filmes eram campeões de bilheteria e, aos moldes do que acontece hoje em dia, centenas de produtos, de roupas a bonecas, foram lançados com sua marca, rendendo-lhe milhões de dólares. Shirley chegou a ultrapassar em popularidade – e arrecadação – astros e estrelas adultos como Clark Gable, Bing Crosby, Gary Cooper e Joan Crawford. A Academia de Hollywood, em reconhecimento, lhe deu um Oscar em miniatura.

Em 1939, já adolescente, seus filmes começaram a atrair menos público. Tentou retornar como atriz adulta mais tarde, mas não deu certo. Resolveu, então, dedicar-se à diplomacia. Foi embaixadora dos Estados Unidos em Gana e Checoslováquia, também servindo nas Nações Unidas.

Londres – O pânico moral sobre a sexualização de "crianças-estrelas" não se trata apenas de um fenômeno moderno. Ano que vem, Shirley Temple completa 80 anos, uma data marcante, ainda mais para alguém que ganhou significado no mundo do entretenimento por ser pequena. A heroína de Little Miss Marker e Sonhos de Moça recebeu um presente adiantado – e nada bem-vindo – numa das maiores exposições artísticas do verão europeu: um quadro que ressuscita o efeito bizarro que a presença de uma criança costumava ter no meio de figuras artísticas de meia-idade.

A mostra da Tate Gallery, que envolve a relação entre cinema e a obra do artista catalão Salvador Dalí, inclui um retrato no qual o surrealismo eterno do espanhol revela uma atualidade tóxica. Uma colagem, realizada em 1939, intitula-se "Shirley Temple, o Mais Jovem, Mais Consagrado Monstro do Cinema em Seu Tempo" e dá a impressão de uma foto de jornal em preto-e-branco de uma cabeça de boneca de cabelos cacheados em um corpo de leoa com seios fartos, pintado com coloração vermelha profunda em contraste com as patas brancas. Um morcego vampiro está sentado na cabeça de Shirley, e ela tem os ossos de sua última vítima dispostos ao seu lado.

Não é preciso se esforçar para ver as imagens fálicas de Dalí e notar que o esqueleto da refeição da predadora foi devorado de uma vez só, o que denota que ela é uma "devoradora de homens". Essa demonização erótica de uma menina de 11 anos é chocante, não há duvida, mas fica ainda mais impactante, porque a ira selvagem de Salvador Dalí contra a atriz é também a de um contemporâneo artístico na Inglaterra: o romancista e crítico Graham Greene (1904-1991).

Com a exposição do quadro de Shirley em Londres, nos aproximamos do 70.° aniversário de um caso de calúnia em que a 20th Century Fox processou Greene o autor da crítica ao filme que foi um equivalente literário à pintura de Dalí (1904-1989). Em seu artigo, escrito em outubro de 1937, o escritor analisava a performance da atriz, que tinha então 9 anos, em A Queridinha da Vovó. O romancista argumentou que, apesar de ser "vendida" como uma criança inocente, a atriz tinha "um apelo mais secreto e adulto" e era, de fato, uma "prostituta completa" com um "traseiro bem desenvolvido".

Apesar de pedofilia não ser um termo muito em voga nos anos 30, o que Greene queria dizer era claro quando ele sugeriu que, para a audiência masculina dela, havia uma cortina de segurança, representada pela história e pelos diálogos, que permitia ao público masculino desfrutar do prazer de assistir à pequena Shirley sem culpa. Devido a pensarmos em pânico moral por causa da sexualização das crianças – feita por anunciantes, fabricantes de roupas e o mundo da música – e o vermos como um fenômeno moderno, é chocante descobrir que esses sentimentos já foram expressos sete décadas atrás. Em ambos os casos, seja o do quadro ou o do artigo, a ira que foi expressa parece estranhamente fora de proporção em relação às performances da atriz.

Podemos até pensar, dados os artistas envolvidos, que talvez, tanto o quadro quanto o texto escondam uma espécie de mea culpa, de manifestação de auto-repulsa. Além de terem nascido no mesmo ano, Greene e Dalí eram católicos romanos (o espanhol por batismo e o inglês, por conversão) bem mais interessados em sexo do que sua religião, família ou sociedade permitiam.

Será que, ao contemplar Shirley, eles sentiram uma mudança em seus comportamentos que ia além dos sonhos que eles poderiam ter? Pode se dizer, de qualquer forma, que Dalí e Greene foram inocentados pelo tempo. A Fox e a atriz venceram o caso da calúnia, o que levou o fechamento do jornal Night and Day, que publicou a resenha.

O fato de que logo depois de Dalí ter visto a estrela mirim em A Princezinha, ele foi capaz de pintar seu quadro selvagem com impunidade, confirma que artistas estão mais seguros do que os escritores. No que se refere a leis "camisa-de-força" contra difamação.

Apesar disso, a atriz, que depois se tornou diplomata dos EUA, sugeriu que Greene tinha razão e que ela agora se dá conta de que os estúdios realmente impuseram tons adultos em seu figurino, movimentos e gestos. Certamente, a história do cinema demonstra que artista e escritor estavam corretos ao verem algo monstruoso e impróprio na atriz pueril de Hollywood.

Diana Serra Cary, outra atriz infantil que chegou a ser mais popular do que Shirley, escreveu sobre a exploração e os danos psicológicos sofridos pelos talentos precoces em Hollywood, e agora, aos 90 anos, ela lançou uma campanha por leis para defender atores mirins.

Defesas da posição da atriz aparecem diariamente em tablóides. Ao mesmo tempo em que Shirley Temple e Diana Serra Cary conseguiram uma boa vida adulta, as carreiras de Drew Barrymore e Lindsay Lohan mostram o jardim de infância destrutivo que a fama cinematográfica pode ser. "É fácil de imaginar", diz o publicitário Damien Hirst, referindo-se ao quadro de Dalí, "Lindsay Lohan no lugar de Shirley, como uma gatinha sexual destruída, deitada em meio a garrafas vazias e linhas brancas de cocaína". E, quando se olha para Dakota Fanning, o que mais se aproxima a uma Shirley Temple contemporânea, você tem a esperança de que ela tenha pais e agentes vigilantes. Talvez, os milhões de dólares que já ganhou consigam comprar para ela o quadro de Dalí como um aviso.

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