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O Brasil tem hoje em dia uma geração de atores extremamente identificados com o cinema, algo que foi recuperado com a retomada produção nacional, iniciada em meados da década de 90. Neste período, o primeiro ator a marcar sua imagem através da tela grande foi Matheus Nachtergaele – na seqüência viriam Lázaro Ramos e Wagner Moura. João Miguel (Cinema, Aspirinas e Urubus) deve ser o próximo.

O talentoso artista paulista se destacou inicialmente no teatro, na peça O Livro de Jó, do grupo Teatro da Vertigem, estreando no cinema em O Que É Isso Companheiro? (1997). Atualmente, ele tem mais de 20 longas no currículo, com destaque para as atuações em O Auto da Compadecida, Cidade de Deus, Amarelo Manga e Tapete Vermelho, pelo qual acaba de receber o prêmio de melhor ator do ano pela APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte).

Nachtergaele se prepara para estrear na direção no próximo ano com A Festa da Menina Morta, que vai filmado na região do Alto Rio Negro, no Amazonas. O ator concedeu entrevista exclusiva ao Caderno G durante o Festival de Brasília 2006, logo após o debate do polêmico Baixio das Bestas (vencedor da mostra competitiva), do qual é um dos protagonistas. Emocionado e perplexo pela recepção até certo ponto negativa do filme – foi considerado violento e misógino por boa parte da crítica e do público do evento candango –, Nachtergaele falou sobre a nova produção do pernambucano Cláudio Assis e contou em detalhes como será a realização de A Festa da Menina Morta, que terá no elenco Daniel de Oliveira.

Caderno G – Fale sobre Baixio das Bestas e o impacto que ele causou em Brasília, e ainda deve causar quando chegar aos cinemas.

Matheus Nachtergaele – É importante a gente entender Baixio das Bestas a partir da realidade que ele retrata. O Brasil é um país construído na exploração do próprio Brasil. De uma certa forma, na destruição desse próprio Brasil, na sua usurpação. É um país vilipendiado, primeiro por estrangeiros, que depois vão se tornando brasileiros e continuam vilipediando a terra e os outros. E aí, uma série de coisas entra a reboque: o escravagismo, a exploração extrema do homem que é levado a situações de humilhação. Baixio das Bestas seria impensável numa comunidade indígena. Só é possível numa comunidade de exploração como a nossa. É um filme sobre a perversão que o brasileiro herdou da sua colonização, a perversão da relação que ele tem com sua terra e consigo próprio. É um filme em que as pessoas se usam umas as outras. O filme é violento nisso, não como estão dizendo, de ser violento na perversão sexual, no trato das imagens. Ao contrário, é um filme delicado, fotografado lindamente, muito bem filmado, elegante até. Você vê que ainda estou bem incendiado pelo debate do filme. A gente (elenco e equipe técnica) está emocionado e ofendido com a dificuldade que as pessoas tiveram em assistir a um trabalho simples como Baixio das Bestas. Ele não é complexo. Se for, como vamos assistir ao Julio Bressane, ao Ana Carolina? Se Baixio das Bestas é difícil de assistir, estamos com um problema. Não é um filme fetichista, ao contrário, é um filme poético.

Você vai estrear na direção de cinema com A Festa da Menina Morta. Como está a produção do filme?

Estou me aproximando da filmagem (previstas para o primeiro semestre de 2007). Estou trabalhando desde 1999 nesse projeto, e agora as coisas vão acontecer. Preciso lembrar o tempo todo para que estamos fazendo isso. Para me lembrar de que há alguma coisa a ser dita, não apenas um filme a ser feito. Por que e para que fazer o filme eu ainda não sei.

Fale um pouco sobre a história a ser contada.

É um argumento meu. Explicá-lo é um pouco complicado. Mas ele é um filme sobre um drama familiar que dá origem a uma seita religiosa. De uma certa maneira, poderia se pensar que é um filme sobre como as pessoas se relacionam com a dor, e a partir daí surge uma seita, e como os personagens do filme se relacionam com essa seita, que é metáfora dessa dor – aquilo que não tem explicação torna-se religião. O filme é uma investigação sobre isso. O Cristianismo nasce da imolação do Cristo. A Festa da Menina Morta nasce de uma imolação de uma menina. E como as pessoas se relacionam com isso. A idéia é simples, de uma certa forma, mas é complexa. (risos)

Por que filmar no Amazonas?

Vou filmar no Alto Rio Negro, um lugar bem isolado, onde a cultura fica muito isolada e, por isso, muito fácil de ser currada. Acho que a região Norte, muito mais que o Nordeste, é um lugar muito propício à curra da cultura. É um lugar onde a cultura brasileira genuína, indígena, deveria estar muito presente, mas muito rapidamente já não está. Qualquer novela acaba com a cultura local, numa velocidade estonteante. Uma indiazinha de 10 anos é currada (culturalmente) numa rapidez estonteante. E ela quer isso, ser currada pela antena parabólica, pelo tênis importado, pela camiseta made in China. Ela quer qualquer coisa que não seja sua própria cultura e isso é aterrorizante. Vamos falar sobre isso tudo no filme. Tenho um elenco grande do Amazonas. Vou trabalhar com alguns atores do Sudeste, algumas pessoas de Manaus e a gente do local. Tenho uma protagonista da cidade de Barcelos, que conheci e a convidei para o papel.

Fez muitos testes para o elenco?

Não gosto de teste, sou contra teste. Não testei nenhum ator. Eu confio ou não confio. Vejo se tem ou não tem suco ali. E vamos juntos resolver os pepinos que aparecerem, as dificuldades, a falta ou excesso de técnica. Mas não vou ficar testando para encontrar alguém que se adeqüe ao papel. Sempre me neguei a fazer teste e acho que, como diretor, tenho que ser fiel a essa minha postura como ator. As duas vezes que fiz teste para ator fiquei muito ofendido, porque as pessoas conhecem meu trabalho, sabem quem eu sou, não preciso fazer um "testezinho" para o diretor ter certeza. Se você quiser fazer um filme comigo, eu sou um bom ator, posso fazer. Mas não é preciso me testar com quatro ou cinco atores para você decidir o qual é o mais fácil para você trabalhar. E também não estou levando preparador de elenco, eu mesmo é que vou fazer essa função. Esse é o trabalho do diretor, c...! (risos) É uma certa reação minha, não tenho nada contra quem faz. Eu entendo em que alguns processos isso seja necessário, mas reajo contra isso. O diretor tem de ensaiar seus atores. Não é possível que a burocracia do cinema tenha ficado tão grande, que o diretor não tenha mais tempo de dirigir seus atores. Isso me parece uma loucura, é um profissionalismo que eu não quero.

Já tem em mente a linha de direção que vai seguir, partindo das experiências com os diversos e importantes diretores do cinema nacional com quem trabalhou?

O método vai ter de ser criado. Já começamos a pré-produção e eu percebi que ainda não tenho um método a ser copiado. Há várias coisas que admiro em diretores diferentes. Admiro estilos diferentes de direção e já entendi que nenhum deles é exatamente o meu, que vai ter de ser inventado, descoberto. Vou ter de chegar lá e ver. Tenho certeza que cada ator precisa de um tipo de diálogo comigo, que cada pessoa da equipe precisa de um tipo de intervenção minha. E de que minha função é contaminar as pessoas para que elas se envolvam no projeto, fazendo o mesmo filme.

Você é de uma geração de atores que dá mais prioridade ao cinema. Tem conseguido viver só de cinema?

Do ponto de vista econômico, não. Mas meu ofício é o cinema. Digo isso até com uma certa dor, porque sinto saudade de ser um homem de teatro, que fui durante muitos anos. Mas é difícil fazer tudo ao mesmo tempo com afinco, com honestidade. Também passei a ser um homem de televisão. Gosto de televisão, acho importante fazer, mesmo. É uma responsabilidade grande, tudo luta contra, o discurso é medíocre, você tem de estar em estado de arte no meio de uma mediocridade enorme, de grande produção mesmo, comercial. E é preciso ter poesia ali para as pessoas que assistem. Gosto de fazer televisão, acho um desafio. Mas hoje em dia sou mais um homem de cinema. É no cinema que um país consegue se enxergar.

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