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O português Gonçalo M. Tavares, nascido em Angola em 1970, é um escritor dos mais importantes do mundo. Dono de uma trajetória fantástica, ele passou a escrever obsessivamente na adolescência, mas só começou a publicar depois dos 30 anos. E então não parou mais.

Na última década, erigiu uma obra que impressiona quem se aproxima dela. Sua proeza mais recente se chama Uma Viagem à Índia, uma epopeia dividida em dez cantos e ambientada nos tempos atuais.

O livro se inspira no clássico do século 16 Os Lusíadas, de Camões, e não é fácil classificá-lo. Escrito em forma de versos livres, narra o périplo de Bloom, que sai de Lisboa para ir ao Oriente. Vencedor de prêmios literários na Itália, na Sérvia, na França, em Portugal e no Brasil – onde levou o Portugal Telecom em 2007, pelo romance Jerusalém, parte de uma tetralogia –, Gonçalo M. Tavares respondeu algumas questões por e-mail falando sobre sua escrita instintiva e defendendo tanto a beleza que vem da confusão quanto a que precisa de tempo para ser notada. Ele faz também uma análise inesquecível da palavra "reparar".

Muitos se apressaram em comparar Uma Viagem à Índia ao clássico Os Lusíadas. Essa leitura faz sentido?

Os Lusíadas é uma obra fundadora da língua portuguesa, um livro espantoso, um daqueles clássicos que nos deixam maravilhados, uma obra para contemplarmos vezes sem conta. É uma obra de outro mundo. Tudo começou, para mim, por uma aproximação amorosa, uma aproximação desse clássico que adoro. A ideia de Uma Viagem à Índia é pensar se é possível uma epopeia hoje, no século 21. E, se é possível, como seria? Hoje, não estamos no tempo das grandes aventuras coletivas e Uma Viagem à Índia relata a aventura de um individualista, Bloom. Que é um herói, mas também um anti-herói. É alguém que foge de Lisboa porque cometeu um crime. É um herói da mesquinhez, um herói das coisas mínimas e insignificantes. Uma Viagem à Índia acompanha a estrutura de Os Lusíadas – quando há uma tempestade nos Lusíadas há uma tempestade em Uma Viagem..., mas, como disse, é tudo passado em 2003, no século 21, que é um século da decepção e da queda e que surge depois do fim das utopias. Um século muito menos esperançado, portanto.

Os leitores estão com dificuldade de classificar o seu novo livro, encarando-o como algo entre a prosa e a poesia. Como você o descreve?

Talvez não seja muito importante classificar. Penso que é interessante lermos um livro sem pensarmos em categorias literárias. Até porque não há gêneros literários puros. Uma Viagem à Índia parte da estrutura da epopeia clássica – nesse sentido é uma epopeia atual, mas uma epopeia do século 21 não pode ser igual à epopeia clássica. É completamente diferente. Mas o livro depois transforma-se em algo que não sei bem o que é, não sei a que gênero pertence. E gosto de não saber o que é. O professor Eduardo Lourenço no prefácio classifica enquanto gênero literário de forma por vezes completamente oposta – é uma epopeia, antiepopeia, etc. Acho que faz sentido.

Poderia falar um pouco sobre o processo de criação do livro? A quebra das frases e as divisões criadas dentro de cada canto foram organizadas com que propósito?

A criação do livro tem um ponto de partida – a estrutura de Os Lusíadas. Acompanha passo a passo as peripécias desse espantoso clássico. Tudo é passado para o tom deste século, em que, por exemplo, a ironia é marcante – século 21 em que o solo está bem mais embaixo, em que tudo é individual e muitas vezes as façanhas são façanhas menores: resistir a um assalto, abrigar-se de uma chuvinha em vez das grandes tempestades do mar etc. A partir dessa estrutura, escrevi muito instintivamente. A quebra das frases não tem a ver propriamente com a ideia de poesia pura, é algo bem diferente – não consigo bem explicar. Este livro é uma ficção. Por vezes chamam romance-poema, ou algo semelhante. Mas a quebra das frases é fundamental, é ela que dá o ritmo e a respiração do livro. Escrevi com essa estrutura de frase, essa estrutura me deu uma música e uma velocidade, ou uma lentidão de escrita muito diferente da normal. O ritmo é fundador deste livro.

Do nome do personagem Bloom até o formato que remete a Camões, além de outras referências inseridas no texto, o seu romance trabalha com uma quantidade grande de referências literárias. Sem dúvida, você é um leitor extraordinário. Por que é importante estabelecer relações com outras obras literárias?

A minha escrita é muito instintiva, como disse. Quando os dias correm bem, escrevo horas seguidas sem levantar a cabeça. Mas a leitura é fundamental. Gosto da ideia de que um escritor contemporâneo tem obrigação, dever mesmo, de estar atento e de dar atenção e o seu tempo às grandes obras literárias que nos antecederam. Gosto de dar a imagem das gerações enquanto carroças, imagem que vem de uma história de ciganos. Cada geração é, de certa maneira, uma carroça que segue outras que passaram décadas ou séculos antes. As carroças anteriores, as gerações anteriores, vão nos deixando sinais, marcas, indícios, por exemplo, em cada cruzamento, que mostram quais as decisões que tomaram, se viraram para a esquerda ou para a direita. Nós quando chegamos a um cruzamento temos dois deveres – um é o dever de conhecer a história da literatura, conhecer os indícios que nos deixaram. E aí surgem, naturalmente, as relações com outras obras literárias – são a nossa herança. Termos, pois, a noção de que não somos a primeira carroça, que antes de nós já existiram escritores e obras espantosas. Mas também temos o dever de deixar algo para as gerações seguintes. Devemos ter a noção de que não começamos nem fechamos o mundo. Não somos a primeira carroça nem a última. Temos de receber algo que nos deixaram e depois deixar algo para os que aí vêm.

No Canto II, 42, lê-se: "Não enchas a casa de móveis e de outros objetos,/ por favor, guarda espaço para beleza,/ para que a beleza caiba". Você acha que, hoje, na vida abarrotada de coisas, há espaço para a beleza?

Talvez, embora eu ache que há uma beleza que vem da confusão e da mistura, por vezes da excessiva velocidade das cidades. As cidades confusas têm uma beleza desordenada, mas por vezes excitante. Eu penso que há vários tipos de beleza, uma é uma beleza que excita e que nasce da confusão, e da associação de elementos estranhos entre si. Outra beleza, por exemplo, é aquela beleza clássica, para a qual temos que disponibilizar tempo, é uma beleza que precisa de silêncio e lentidão para ser contemplada. Esta é uma beleza a que hoje é mais difícil chegar. É preciso isolamento, espaço, afastar os móveis, guardar espaço e tempo para que ela surja. É aquela beleza que só acede quando reparamos em algo durante muito tempo. E a palavra reparar é muito bonita, porque tem um duplo sentido. Reparar significa parar durante muito tempo diante de uma coisa. Reparar não é apenas parar, é parar e parar e continuar parado e continuar parado e observar. E, ao mesmo tempo, em português, a palavra reparar tem o sentido de reparação de uma máquina por exemplo – reparar neste sentido é voltar a pôr para funcionar algo que estava estragado. Reparar um motor de automóvel, por exemplo, ou reparar um quadro, é deixá-los como novos. Isso é bonito porque significa que só conseguimos reparar uma coisa ao torná-la de novo forte – se repararmos nela, isto é, se lhe dermos atenção, se lhe dermos muito do nosso tempo. E a beleza mais interessante, também nos livros, mas não só, é muitas vezes esta – a que exige de nós muito tempo de atenção; precisa que reparemos nela. Se não repararmos nela, ela não existe. Isso nos dá uma grande responsabilidade.

Serviço:

Uma Viagem à Índia, de Gonçalo M. Tavares. Leya, 480 págs. , R$ 44,90.

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