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Arte na rua

Sobre a pele da cidade

O grafite é uma espécie de tatuagem que recobre os muros e fachadas das cidades. O Caderno G Idéias propõe um passeio por esta manifestação que é sintoma e reação ao caos urbano

“Na década de 1980, Paulo Leminski escrevia poemas na rua como a frase ‘Palpite. O grafite é o limite’. Na época, não havia muito grafite. Agora, a gente está vendo os grafiteiros conquistando o seu espaço”. Deivid (Heal), grafiteiro e estudante de Artes Visuais | Guiliano Gomes/ Gazeta do Povo
“Na década de 1980, Paulo Leminski escrevia poemas na rua como a frase ‘Palpite. O grafite é o limite’. Na época, não havia muito grafite. Agora, a gente está vendo os grafiteiros conquistando o seu espaço”. Deivid (Heal), grafiteiro e estudante de Artes Visuais (Foto: Guiliano Gomes/ Gazeta do Povo)
Grafite de Thiago Syen, de 26 anos:

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Grafite de Thiago Syen, de 26 anos:

Deivid, o Heal, de 23 anos, teve seu primeiro contato com o grafite pela pichação |

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Deivid, o Heal, de 23 anos, teve seu primeiro contato com o grafite pela pichação

Bernardo, de 24 anos, assina seus grafites como Jekill, referência ao personagem de Stevenson |

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Bernardo, de 24 anos, assina seus grafites como Jekill, referência ao personagem de Stevenson

Diante de um enorme mural pintado pelos OSGÊMÊOS na parede externa da sala onde está montada a exposição Vertigem, no Museu Oscar Niemeyer, jovens alunos do ensino municipal de Curitiba ouviam a explicação do monitor com uma certa displicência. Até que ele apelou: "Quem aqui faz grafite?" Os olhares se procuraram e alguns dedos indicadores tímidos se ergueram sem que, no entanto, pudessem ser percebidos pelo monitor.

Os escritores urbanos, ou writers, como os grafiteiros se denominam, são discretos. Mantêm seu anonimato como forma de garantir sua liberdade de pintar pelas ruas. Para serem identificados pelo grupo, usam a tag, espécie de pseudônimo com que assinam os muros.

Bernardo, de 24 anos, por exemplo, é Jekill. A referência literária – ao livro O Médico e o Monstro (Mr. Jekyll and Mr. Hyde), de Robert Louis Stevenson – acena ao modo como o designer se familiarizou com o grafite. "Comecei escrevendo contos que ilustrava e distribuía sob a forma de fanzines na faculdade. Esses desenhos se transformaram em cartazes e, então, em grafite", conta.

Há quem faça o caminho inverso como Deivid, o Heal, de 23 anos, que teve seu primeiro contato com o grafite pela pichação, começou a inserir desenhos no que pintava pelas ruas e hoje faz faculdade de Artes Plásticas. Seu colega, Thiago Syen, de 26 anos, também começou pichando. "Fui descobrindo o mundo das artes pelo grafite", diz o calouro em Artes Visuais.

Ambos promovem oficinas da "arte" para crianças atendidas pela Fundação de Ação Social (FAS), como parte de um projeto do Instituto de Defesa dos Direitos Humanos (Iddeha) e da Prefeitura Municipal de Curitiba.

Os três foram entrevistados na galeria A Casa, inaugurada em outubro por Deivid, Leandro Cínico, Paulo Auma, Thiago Syen, todos artistas de rua, e a psicóloga Tatiana Alves, proprietária do espaço. "A gente se coloca como uma galeria de street art. Mas grafite mesmo só acontece na rua. Dentro de um espaço expositivo é mural", explica Deivid. Todos separam o grafite de suas atividades relacionadas às artes. "Quero ter a liberdade de me expressar", diz Bernardo.

O envolvimento dos grafiteiros com as academias de arte pode parecer um contra-senso se pensarmos que a manifestação nasce como parte de um movimento popular, o hip-hop, originado nos guetos norte-americanos e incorporado pelos jovens das periferias brasileiras. "O grafite está pulverizado, não está mais atrelado a um grupo social", diz Bernardo.

"Em Curitiba, há muitos grafiteiros ligados às faculdades de arte, mas esse universo é amplo, difícil de definir, porque está sempre mudando. Há variáveis como a diferença de gerações, a origem social, a relação com o movimento hip-hop, com as artes. Além disso, cada grafiteiro tem um trabalho muito peculiar", diz a pesquisadora Conceição Aparecida dos Santos, que prepara um livro que será publicado no site da Fundação Cultural de Curitiba com o título provisório Hip-Hop Lá, Hip-Hop Aqui, em que realiza um resgate do surgimento do grafite, nos Estados Unidos, até chegar ao que se faz em Curitiba.

Conceição explica que, na década de 1980, o grafite passou a ser utilizado por gangues rivais norte-americanas para marcar seus territórios e, por isso, sofreu forte repressão pelo governo – até mesmo a comercialização de latas de spray foi proibida durante um certo período. "Ao mesmo tempo, ele sofre um processo de glamourização. Há uma tentativa das galerias de incorporar o grafite à pop art como uma forma de dar sobrevida a ela", explica a pesquisadora.

Arte ou pichação?

As letras quebradas e garrafais – o tag reto – usadas inicialmente pelos grafiteiros norte-americanos são pichadas em lugares inimagináveis: do muro ao topo de prédios de mais de 20 andares. Curitiba veste-se nos últimos anos com essa "pele" antes só visível, no Brasil, em São Paulo.

"Vejo a pichação como uma conseqüência da realidade das cidades. É invasiva, sim, mas até que ponto a cidade não é invasiva com a especulação imobiliária, a poluição, os prédios, a ausência de verde? Não conceberia uma cidade brasileira sem pichação", argumenta Bernardo.

Quem tem seu muro pichado revolta-se, e pouca gente não associa a pichação ao vandalismo. "Pichação é a forma pura do grafite", afirma Thiago. Bernardo também não vê diferença entre as duas vertentes e explica que parte das pessoas que fazem grafite também picha. "A pichação às vezes é muito mais autêntica. Desde Marcel Duchamp questionar o que é arte ou não é uma discussão vazia", opina.

Conceição explica que nem todo o grafiteiro gosta de associar o que faz à arte. "No senso comum, a arte está ligada ao bonito e ao bom, e eles propõem o que é distorcido, feio. Há experimentalismo, mas não deliberado, eles atuam muito de improviso."

Nesse sentido, a pichação seria uma forma de causar incômodo e provocar pelo impacto estético (ou anti-estético, conforme os lados da discussão). "É uma espécie de agressão simbólica. Deixar sua marca é não só uma questão narcisística, mas uma forma de transgredir um espaço com esses jovens que circulam com liberdade até certo ponto cerceada", diz Conceição.

Ela explica que a pichação é uma forma de existir para uma juventude socialmente invisível "ou porque é pobre ou negra ou porque vive na periferia. O grande barato do writer é deixar sua marca aonde for. O grafite expressa muito bem o sentimento de uma multidão anônima".

Curitiba é considerada por Deivid e Bernardo como a cidade com mais rejeição ao graffiti. Atribuem isso a fatores como a colonização européia e à falsa imagem de cidade-modelo incorporada como verdade pelos próprios cidadãos. A Travessa da Lapa, no centro da cidade, costumava ser uma espécie de gigantesca galeria a céu aberto, com grafite em toda a sua extensão, até ser pintada de branco pela prefeitura. "Era um reduto com liberdade. Mas foi até bom porque o grafite se disseminou pela cidade", diz Deivid.

Bienal do Vazio: piche e protesto

O ataque à 28ª Bienal Internacional de São Paulo, encerrada no dia 6 de dezembro, por um grupo de 40 pessoas que pichou, no segundo piso do prédio da exposição, no Parque do Ibirapuera, frases como "Abaixo a ditadura" e "Fora Serra", levou à prisão a gaúcha Caroline Pivetta da Motta, de 23 anos. O andar foi mantido propositadamente vazio pela curadoria, o que provocou inúmeras críticas e rendeu a esta edição do evento o apelido de Bienal do Vazio.

Caroline Sustos, como assina a garota, está há 48 dias na Penitenciária Feminina de Santana, no Carandiru. Suas últimas palavras pouco antes de entrar na viatura que a conduziria ao presídio foram: "Eu sou pichadora. Viva a pichação!". Ela é a única garota e a mais novata do grupo Susto’s (myspace.com/sustosfamilia), um dos que participaram do ataque à Bienal.

Enquadrada no Artigo 62 da Lei de Crimes Ambientais por destruição do patrimônio cultural, pode pegar de um a três anos de prisão. Caroline também responde processo pela participação no ataque ao Centro Universitário Belas Artes.

Uma carta de indignação do crítico de arte e professor Rodrigo Naves foi publicada no dia 9 de dezembro no jornal O Estado de S. Paulo. "Considero revoltante que a Bienal de São Paulo, instituição ligada à liberdade de expressão, mantenha a denúncia contra a jovem Caroline Pivetta da Mota, presa há mais de 40 dias na Penitenciária Feminina de Santana por ter pichado o prédio do Ibirapuera. A retórica da ‘participação do espectador’ parece valer apenas para quem se presta a participar segundo os critérios da curadoria. Um escorregador na fachada do prédio é arte e não danifica o patrimônio histórico. Pichação não pode. É de matar!", escreveu.

Em comunicado enviado à imprensa na quinta-feira (11), a Fundação Bienal de São Paulo declarou que não possui qualquer ingerência sobre a liberdade da jovem. "Diferentemente do que vem sendo entendido pela imprensa, não cabe à Fundação ‘retirar queixa’ ou pedir ‘relaxamento da prisão’ da jovem, já que a mesma foi detida no ato do delito (flagrante). A decisão pela sua permanência na prisão, ou mesmo a intensidade da pena aplicada ao caso, é de exclusividade da Justiça."

Espontaneidade

Bernardo (Jekill) é a favor do ataque, mas não o vê como pichação. "Foi um ato muito ordenado. A pichação é natural, espontânea e não está preocupada em discutir arte", diz.

Caroline participou da invasão à Bienal "só pra ver o que ia rolar", como afirmou em entrevista a Folha de S. Paulo, no dia 5. "Tanto grafite quanto piche são underground, coisa do fundão. Não são feitos para exposição em galeria. A parada que eu faço é na rua, é para o povo olhar e não gostar", disse.

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