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O escritor moçambicano Mia Couto, autor de Antes de Nascer o Mundo: “É por isso que escrevo: para chegar aos outros, para ser os outros. Escrevo, afinal, pela mesma razão que faz rezar alguém que tem fé” | Bel Pedrosa/ Divulgação
O escritor moçambicano Mia Couto, autor de Antes de Nascer o Mundo: “É por isso que escrevo: para chegar aos outros, para ser os outros. Escrevo, afinal, pela mesma razão que faz rezar alguém que tem fé”| Foto: Bel Pedrosa/ Divulgação

Saiba mais sobre Mia Couto

- Ele nasceu na Beira, em Moçambique, em 1955, e é um dos principais escritores africanos;

- Comparado a Gabriel Garcia Márquez, Guimarães Rosa e Jorge Amado. Seu romance Terra Sonâmbula foi considerado um dos dez melhores livros africanos do século 20.

- Em 1999, o autor recebeu o prêmio Vergílio Ferreira pelo conjunto de sua obra e, em 2007, ganhou o prêmio União Latina de Literaturas Românicas.

- Em 2007, ele venceu o prêmio Zafffari & Boubon, concedido durante a Jornada Literária de Passo Fundo (RS), no valor de R$ 100 mil.

Fonte: Companhia das Letras (www.companhiadasletras.com.br).

O escritor moçambicano Mia Couto é dos nomes mais importantes da literatura africana atual. Biólogo e jornalista, o autor tem 21 obras publicadas entre romances e coletâneas de crônicas, contos e poesia. Ganhou diversos prêmios, entre eles o prêmio Vigílio Ferreira, pelo conjunto de sua obra, em 1999 e o União Latina de Literaturas Românticas.

Na entrevista a seguir, feita por e-mail, Couto fala com exclusividade à Gazeta do Povo sobre o romance Antes de Nascer o Mundo, publicado há pouco pela Companhia das Letras.

O livro conta a história da família de Silvestre Vitalício, patriarca misógino que decide se exilar junto com seus dois filhos e seu amigo militar Zacaria Kalash em uma terra deserta batizada por ele de Jesusalém. A trama é focada no filho pequeno de Silvestre, Mwanito, vítima da tirania do pai que o priva do contato com outras pessoas mentindo que a raça humana foi extinta.

Mwanito nunca havia visto uma mulher e tem suas crenças abaladas quando conhece Marta, que vai a Jerusalém procurar seu marido desaparecido.

Com os últimos livros, o senhor deixou o estilo híbrido policial/histórico para retratar sagas de famílias torturadas e impregnadas de tabus. A que se deve essa mudança?

Farei esta e outras mudanças enquanto continuar escrevendo. Não me apetece ficar condicionado do ponto de vista formal ou temático. A escrita é uma aventura sem bússola e ela só é apelativa enquanto me entregar esses caminhos de errância. Existe no seio de uma família mais histórias que nas grandes sagas históricas.

Outro ponto abordado em Antes de Nascer o Mundo e que atravessa praticamente toda sua obra é a vontade dos personagens em esquecer o passado. Esse é um tema que o interessa muito?

Não é o passado em si que me interessa mas a nossa relação com o tempo. E o modo como entendemos os tempos já vividos. Por que os tomamos demasiado a sério. Ou por que, inversamente, deixamos de ter passado para sermos passado. Quanto mais o tempo presente nos expulsa mais seria natural abrigarmo-nos no passado. Mas hoje esse passado só nos chega por via da invenção ou da mentira. Inventamo-nos quem já fomos. Mas de todo o modo nós somos, sobretudo, quem já fomos.

Assim como em seu livro anterior, Antes de Nascer o Mundo também retrata um português (desta vez uma portuguesa) que vai a Moçambique em busca de um amor arrebatador. Depois de anos de embates entre moçambicanos e portugueses, como é a relação entre a cultura dos países e o que esse "amor arrebatador" em Moçambique pode representar?

Não se trata tanto de uma metáfora da relação de Moçambique com Portugal mas da relação mistificada da Europa com África, da percepção europeia que faz com que os africanos sejam mais dotados de "corpo", isto é mais próximos da natureza. Quero lidar com estereótipos que fazem pensar que já nos conhecemos nos dois sentidos. Os africanos estão dominados por clichês quando "pensam" a Europa e os Europeus. Não quero, pois, falar de entidades geográficas mas de relações humanas entre uns e outros que se tornam "uns" e "outros" sobretudo pela afirmação de identidades-refúgio.

Neste livro temos o personagem Zacaria Kalash, um militar narrado muitas vezes de forma cômica e cujo nome é uma clara referência a Kalashnikov estampada na bandeira do país. Como é para Moçambique viver sob a sombra da arma após tantas e recentes guerras?

As guerras passaram, felizmente. E parece muito pouco provável que regressem tão cedo. Contudo, nenhuma guerra passa totalmente. Fica a sua memória que é sempre uma falsa memória. No caso desta última guerra, o que sucedeu é que essa memória se converteu numa não-memória: ninguém parece recordar-se de nada. Não houve mortes, não houve tiros, não houve violência. Uma amnésia coletiva recobre o conflito. É uma solução que aponta para a economia do sofrimento e revela a sabedoria de não despertar demônios mal adormecidos. Mas é uma falsa solução. A literatura pode, aqui, ser uma ajuda, uma terapêutica que estimula um regresso ao passado que não seja marcado pelo apontar de culpas nem por aproveitamentos políticos.

O exílio é tratado no novo livro de forma mais radical. Qual a sua opinião sobre comunidades moçambicanas que se isolam da civilização e o quanto isso é importante para sua obra?

Ninguém está assim isolado. Encontrei famílias que pareciam apartadas de tudo em zonas interiores de Moçambique. Num primeiro instante, dava a ideia de estarem fora de todos os circuitos de relacionamento. Num olhar mais próximo, porém, se percebia que estas famílias dependiam de trocas que realizavam continuamente com outras povoações.

Este mundo não permite que ninguém esteja fora dele. A família que retratei no meu romance é resultado da minha imaginação. E também ela vivia numa relação de dependência oculta com o exterior. O que pretendi foi estabelecer uma condição limite, o desafio impossível de um recomeço absoluto nas costas da sociedade.

Muitos dos capítulos dos livros tem epígrafes com trechos de poemas de Hilda Hilst e Adélia Prado, além de uma referência a Chico César. Qual a proximidade das culturas brasileira e moçambicana?

Essa proximidade foi iniciada quando da viagem forçada dos escravos africanos. Essa marca é decisiva pois esses africanos vieram a influenciar toda a sociedade e toda a espiritualidade brasileira. Uma marca africana se impôs em todos os setores sociais e em todas as classes do Brasil. Eu creio que esta religiosidade herdada da África é o componente mais profundo dessa proximidade. É verdade que a esta partilha religiosa se somam os componentes da língua comum, da história comum e da presença da cultura, administração e religião dos colonizadores portugueses. Deve ser sublinhado também a luta pela afirmação da cultura própria em demarcação com a cultura do dominador: esse esforço nacionalista reforçou os laços de união dos nossos povos.

Comparado a outros livros seus, Antes de Nascer o Mundo é bem mais moderado em relação aos neologismos e filosofias populares. O senhor tem medo de se tornar prisioneiro do seu próprio estilo?

Tenho. Não quero ficar preso a um estilo identificável. Sou eu que devo ser identificável e não uma forma que busquei para me dizer. Mas eu quero me surpreender continuamente, quero colocar em causa o que penso já saber fazer. A minha paixão para com a escrita parte muito de eu não saber, do gosto pela ignorância e pela rejeição de um fórmula acomodada. Nestes três últimos livros eu procurei uma maior contenção do ponto de vista da criação linguística e investi, sim, numa recriação poética. Talvez seja essa a constante do meu trabalho: a poesia.

O personagem Mwanito desafia as ordens do pai e aprende a rezar e a escrever, mantendo um diário em cartas de baralho e notas de dinheiro. Qual o poder da religião e da escrita, e qual a relação entre os dois para o senhor?

Sou ateu mantendo desperta um profunda religiosidade, no sentido de encontrar pontes que me religuem ao universo. É por isso que escrevo: para chegar aos outros, para ser os outros. Escrevo, afinal, pela mesma razão que faz rezar alguém que tem fé.

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Serviço

Antes de Nascer o Mundo, de Mia Couto. Companhia das Letras, 280 págs., R$ 42.

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