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Sem disfarçar o mau humor, Crumb divertiu o público que foi ouvi-lo em Paraty | Divulgação/Flip
Sem disfarçar o mau humor, Crumb divertiu o público que foi ouvi-lo em Paraty| Foto: Divulgação/Flip

Crumbianas

Talvez por ter respondido as mesmas perguntas inúmeras vezes, Crumb consegue dispensar qualquer assunto que não o interesse

Coisas malucas

Por que decidiu ilustrar uma passagem bíblica (com o Gênesis)? "Porque a Bíblia é cheia de histórias malucas e as pessoas gostam desse tipo de coisa."

Arte

O que pensa sobre a venda do desenho original de Cheap Thrills (capa do disco de Janis Joplin feita por Crumb) ter alcançado milhares de dólares? "Não penso a respeito, não me relaciono com o mundo da arte."

Jovens

Qual sua opinião sobre os jovens cartunistas que estão surgindo? "Não conheço nenhum jovem cartunista."

Sugestão

O que diria para alguém que pensa em se tornar cartunista? "Vá morar com a mãe ou algo assim." (O comentário sugere que os quadrinhos não permitem que um desenhista se sustente sozinho.)

Fórmula

"Se a história é boa e a arte é ruim, um livro de quadrinhos ainda pode ser bom. Mas, se a história for ruim, não importa o quão boa é a arte."

Harvey Pekar

"Um grande contador de histórias que não sabia desenhar. E um sujeito muito deprimido." (Pekar, que morreu no mês passado, escreveu histórias que foram ilustradas por Crumb.)

  • Capa e reprodução de página da biografia de Franz Kafka, assinada por Robert Crumb

Robert Crumb é de uma honestidade desconcertante. O cartunista veio ao Brasil para participar da Festa Literária de Paraty (Flip), que terminou ontem, e aproveitaria a passagem pelo país para visitar lugares em que ninguém o conheça. É assim que prefere viajar: anônimo.

O assédio que recebeu na cidade histórica o fez parecer um tipo de super-herói para os seus admiradores. O que o incomodou muito. Numa conversa com a imprensa, na última sexta-feira, alguém teve coragem de perguntar o que ele estava achando da Flip. Com a expressão soturna, sem disfarçar o mau humor, ele respondeu: "Estou me divertindo a valer".

A sala veio abaixo porque ninguém está acostumado com esse tipo de resposta franca numa entrevista coletiva. Porém, não se esperava nada diferente de Crumb.

Teve mais. Questionado sobre sua presença num evento literário, ele admitiu estranhar. "É bizarro que os quadrinhos sejam levados tão a sério. Meu editor no Brasil me explicou que eles são vistos agora como algo que pode render dinheiro. Acho que é por isso que estou aqui", disse. Por isso e porque sua mulher, Aline Kominsky-Crumb, o convenceu a aceitar o convite da organização da Flip. Ao menos foi isso que ela contou para todo mundo.

Com um paletó preto e o cabelo grisalho dividido ao meio, usando óculos de lentes grossas (exatamente como ele costuma se desenhar), encarou as perguntas com paciência. O microfone estava um palmo à esquerda dele, num suporte, e toda vez que dava uma resposta, inclinava o corpo e a cabeça, mas não mexia no microfone.

Crumb tinha Aline de um lado e o cartunista Gilbert Shelton do outro. De braços cruzados, cabelo e cavanhaque bem brancos, Shelton – o criador dos Freak Brothers – também estava acompanhado da mulher e sua atitude com Crumb é de um amigo-admirador, apesar de "não ter achado muita graça" no Gênesis (livro de Crumb inspirado na Bíblia e publicado em português pela Conrad).

Diante da mesa onde estavam os cartunistas e as mulheres, quatro dezenas de jornalistas e fãs embasbacados queriam saber o que Crumb pensava sobre qualquer coisa, do aquecimento global ao cinema 3D.

Radicado na França há quase 20 anos, diz ter vergonha de ser americano. Se fosse desenhar um rosto para os Estados Unidos de hoje, seria um rosto "feio, muito feio". Depois de pensar um segundo no que tinha acabado de falar, emendou: "Na verdade, tenho vergonha de viver no mundo, mas não há muito que possa fazer a esse respeito".

A humildade Crumb também perturba. Ela só não é maior que a de Shelton, que parece não se importar com toda a atenção que o colega recebe. Crumb acaba de lançar no Brasil, pela Desiderata, uma biografia em quadrinhos do escritor Franz Kafka. Antes de se dispor a desenhá-la, admitiu que não sabia nada do autor de A Metamorfose. Sobre a dificuldade de compor em traços um personagem tão complexo quanto Kafka, Crumb comentou que não foi assim tão complicado. "Eu usei fotografias", disse, num tom de "não foi nada demais".

Hoje, depois de concluir Kafka de Crumb, o cartunista admite um certo "parentesco" com o escritor checo.

Sobre novas tecnologias, ele diz não pensar nelas nem se interessar por elas. "Sou um artista do século 19", disse. Essa frase dá sentido à maneira como ele fala de seus trabalhos. No festival literário, muitos queriam saber o quanto é difícil o processo de criação de Crumb, que fazia cara de quem não entendia tanta elaboração. Ele simplesmente senta e desenha.

Uma das poucas vezes que sorriu ao longo da entrevista foi quando alguém mencionou discos de música brasileira dos anos 1930. "Estou atrás de discos dessa época. Se alguém tiver, eu compro", disse.

Crumb é um notório colecionador de LPs raros, paixão que o levou a criar uma série de cartões colecionáveis (os cards, uma mania nos EUA que chegou tarde ao Brasil) com artistas da época. Publicados pela primeira vez em meados dos anos 1980, foram reunidos há pouco em Robert Crumb’s Heroes of Blues, Jazz & Country (inédito no Brasil).

Um exemplar desse livro serviu a uma situação inusitada. Ainda em Paraty, um leitor abordou Crumb num restaurante, pedindo autógrafo. "OK", disse o cartunista, sem entusiasmo. Pegou a caneta do fã e levou mais de um minuto desenhando o próprio nome, um "R.Crumb" cheio de curvas com uma referência à cidade e ao ano corrente (a reportagem teve acesso ao autógrafo depois do episódio).

Terminou, fechou o livro e inclinou o volume contra a luz como se tivesse encontrado um defeito na capa. Pegou o guardanapo do colo, molhou na água da taça e esfregou o pano contra a capa. "Ela está cheia de marcas", comentou com o leitor, que pegou o livro, agradeceu de um jeito atrapalhado e foi embora.

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