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Falar de musicais é entrar em polêmicas perigosas. É o tipo do gênero – tipicamente americano, diga-se de passagem (embora a matéria-prima seja inglesa) – que tem lá os seus fãs apaixonados e também grandes inimigos declarados.

Dias atrás, quando Spring Awakening levou sete prêmios Tony e consagrou-se na Broadway, publiquei um singelo post no meu blog, um pouco encantado com o que tinha visto do musical adaptado do clássico O Despertar da Primavera, de Frank Wedekind. Choveram farpas. O quê? Passar a mão em uma das obras mais densas e sinistras acerca das incertezas da adolescência e transformá-la numa operetazinha "soap" embalada por músicas pop? Muita cara-de-pau! Pode ser, mas a energia e o despojamento da encenação me encantaram. Tudo é possível!

Em outro momento, lembro do Paulo Francis fazendo todo tipo de restrição a Les Misérables, mas não conseguindo disfarçar uma certa simpatia pela grandeza do espetáculo. De qualquer forma, um gênero que consegue produzir obras que ficam em cartaz anos a fio tem que ter lá algum tipo de valor, nem que seja o da comunicação fácil pelo espetáculo e pela performance.

Conteúdos à parte, cantar, dançar e interpretar não são coisas fáceis de se fazer e em todo tipo de gaveta há do melhor e do pior. A primeira vez que dei de frente com um deles foi em plena Nova Iorque. Havia chegado pela manhã à Big Apple e, no fim da tarde, já estava cumprindo a primeira peregrinação turística: curtia Cats. Fruto da chatice geral do elefante branco e refém do fuso horário, eu dormi a ponto de roncar e ser acordado pelo turista ao lado com uma suave cotovelada. Melhor. Acordei a tempo de ouvir uma cantora (não lembro o nome) desfilar a belíssima "Memory" com uma iluminação e um cenário deslumbrantes! A platéia aplaudia em pé e eu estava realizado! Aplaudi também. Pequenas brisas poéticas compensam grandes maresias.

Num outro momento, assisti à grande Elaine Page fantasiada de gata Grizabela e cantando a mesma balada. Melhor ainda! Vi outros mais, muitos, incluindo os famigerados Rei Leão e A Bela e a Fera e os sensacionais Oliver e Cabaret, de Sam Mendes, com interpretação mais do que original de Alan Cumming no papel que Joel Grey eternizou.

Mas, para aprofundar um pouco mais este assunto, por si só superficial, faço aqui uma associação, pelo menos pra mim, esclarecedora. Odiei Miss Saigon! Assisti em Londres e me arrependi até o último fio de cabelo pelas libras que deixei na bilheteria. Mas... sempre tem um mas, tenho paixão pela balada "The Last Night The World". Quando interpretada por dois atores/cantores fortes e apaixonados, pode produzir um certo grau de erotismo e sexualidade dolorosa, seja lá o que isto signifique.

Aí, fui ver a tal cena na montagem brasileira. Quase tive um treco. Horrível! Pior que o original mil vezes! E um original que já não era grande coisa. Marcação canhestra e atores falsos buscando verdade numa versão em português cheia das piores rimas, pra não dizer as mais vagabundas. É um tal de terminar versos em "ão" que não acaba mais! Nesse momento, o musical se revela no que tem de pior: a mediocridade da poesia cantada. Em Les Misérables, o verso "one day more", cantado com vigor olímpico por Colm Wilkinsom, virou "só mais um" na versão brasileira. Parece um bêbado pedindo mais um trago no balcão de um bar. E lá se foram Schöberg e Boublil, os letristas!

Um mau ator também faz tudo desmoronar e revela a fragilidade do espetáculo como obra de arte: Toni Braxton até que canta alguma coisa, mas fazendo a Bela em A Bela e a Fera era quase uma coluna com equipamento de som. O que não impedia a platéia de urrar ensandecida cada vez que ela entrava em cena tentando parecer boa, inteligente e faceirinha.

Por outro lado, quem quiser pode conferir no YouTube a performance de Richard Kiley cantando "Impossible Dream" de O Homem de La Mancha. Sublime é o mínimo que se pode dizer da cena. E já que o assunto é versão, fico aqui imaginando o grande ator interpretando a versão de Chico Buarque, que é uma obra-prima.

Então este assunto, como tudo, equilibra-se numa navalha. Musicais podem não ser a nata das artes cênicas, mas quando recebem o toque da genialidade, seja de compositores, encenadores, cantores ou até tradutores, chegam muito perto do que se espera de uma obra de arte: beleza, reflexão e comunicação!

Não falei aqui dos brasileiros como o divertidíssimo Sassaricando, que assisti no Festival de Teatro de Curitiba, porque o melhor do musical brasileiro acontece quando ele acerta na brejeirice. Começa a empolar demais e tudo desanda para uma canastrice nojenta! Brasileiros estão aprendendo a cantar e interpretar ao mesmo tempo. Já se forma uma comunidade especialista no gênero.

Se você for assistir a My Fair Lady, atualmente em cartaz em São Paulo, vai poder conferir que em alguns casos é apenas aquilo que o Ariano Suassuna fala dos brasileiros. Existem os verdadeiros e os falsos. Os verdadeiros são criativos, inteligentes e poéticos; os falsos são um arremedo patético e a sua macaquice é apenas uma cópia malfeita. Não quer dizer que cada macaco tenha que estar em seu galho, mas uma cópia é sempre uma cópia. Até é bonito ter uma reprodução de "Noite Estrelada", de Van Gogh, pendurada na parede da sala, mas o original mesmo está no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque. De resto, tudo vira mero entretenimento fútil.

Pra encerrar, vai aqui um segredo que eu conto como um marujo contaria o seu naufrágio: acho linda esta mistura de gente cantando, dançando, interpretando, tocando e ainda assim contando uma boa história (afinal A Ópera dos Três Vinténs não é um musical?) e não deixaria passar nem por um instante a oportunidade de dirigir um. Eis aí um sonho que gostaria de realizar antes de encerrar a carreira.

Edson Bueno, autor, diretor e ator de teatro. Já dirigiu mais de 50 espetáculos em Curitiba e é o criador do espetáculo New York Por Will Eisner, que, em 1990, misturava cenas cantadas e interpretadas.

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