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Clímax de “Hagoromo”, apresentado em Curitiba, em que uma ninfa dos céus dança para um pescador. | Divulgação
Clímax de “Hagoromo”, apresentado em Curitiba, em que uma ninfa dos céus dança para um pescador.| Foto: Divulgação

A passagem por Curitiba de uma das escolas mais antigas do teatro nô japonês, dias 8 e 9 de outubro, deixou no ar um paradoxo. Como um gênero tão rígido, quase imutável, resiste numa era em que a arte de ponta sacraliza a vanguarda e a inovação?

Após assistir à hipnotizante “câmera lenta” do grupo de Tóquio e ouvir seu relato sobre o significado de alguns kata (movimentos codificados), é possível pensar em algumas hipóteses. Em primeiro lugar, cabe mencionar o apreço da sociedade japonesa pela tradição e o rigor – e é admirável a forma como essa manifestação teatral centenária é motivo de orgulho para a nação.

Quando viaja ao exterior, a exemplo da visita a Curitiba, o teatro nô é recebido por meio de vários filtros. Um deles é o orientalismo, esse fascínio do Ocidente por tudo de exótico que vem do Leste – ou talvez seria melhor dizer: por tudo que nós imaginamos como sendo oriental, algo sobre o que escreveu Edward Said em 1978 (“Orientalismo: o Oriente como Invenção do Ocidente”).

Mas um fator importante para a permanência do nô como clássico relevante é a inseminação que realizou em diferentes culturas desde o século 19.

Uma das primeiras circunstâncias foi sua descoberta pelo dramaturgo e poeta irlandês W.B. Yeats, que bebeu nas fontes do nô para escrever uma peça dançada nos moldes do teatro japonês, “At the Hawk´s Well” (“No Poço da Mulher Falcão”). A obra aprofundou sua experimentação com a ruptura em relação ao realismo, num processo de abertura ao simbólico. A personagem metade humana, metade ave lembra a figura da shite, protagonista do nô e que muitas vezes representa um espírito. A peça foi reconduzida ao berço de sua inspiração, tendo sido adaptada ao teatro nô em várias ocasiões, e hoje integra o repertório japonês. Esse relato é bastante pormenorizado no livro “Teatro Nô e o Ocidente”, de Christine Greiner.

A contaminação do nô nas artes ocidentais – e a subsequente retroalimentação – também ocorreu no teatro de Bertolt Brecht, de quem normalmente se conhece mais a relação com a arte chinesa. Do nô, ele absorveu o conceito de “apresentar “um personagem no lugar de “representá-lo”. E, a partir do clássico nô “Tanikô”, o dramaturgo criou a peça “Aquele Que Diz Sim”, de 1930. Na versão japonesa, uma comitiva que sobe a montanha sacrifica um jovem que adoece, e a crueldade do ato leva à intercessão para que o mundo sobrenatural lhe devolva a vida. Brecht parou na morte do rapaz.

A contaminação do nô nas artes ocidentais – e a subsequente retroalimentação – também ocorreu no teatro de Bertolt Brecht.

A reação emotiva dos estudantes que se depararam com a tragédia – trata-se de sua fase didática – levou à elaboração da continuação, “Aquele Que Diz Não” (1931-32). Nessa etapa, o jovem enfermo é constrangido a aceitar o sacrifício, já que esse seria seu dever moral para com o grupo, mas ele recusa a morte.

Outra permanência do nô observada na arte ocidental é a obra de Robert Wilson, norte-americano que impulsionou a vanguarda teatral a partir dos anos 1970 e ganhou a alcunha de “teatro de imagens” devido ao extremo rigor e exuberância das cenas, que podem ser vistas como quadros. Desde suas primeiras peças, como “Deafman Glance” (1971), que o lançou na Europa, o diretor absorve padrões de movimento ralentado e codificados como nos katas orientais. Essa estética deverá ser aplicada numa estreia de 2016 que celebrará o jogador Garrincha, produzida com texto e atores brasileiros.

Com ou sem essas referências em mente, o espectador curitibano recebeu o teatro Kanze, de Tóquio, com muita curiosidade. A resistência inicial à lentidão de movimentos aos poucos se transformou numa grata hipnose: o fato de não se conhecer o idioma amplifica a abertura para a sonoridade da língua japonesa e faz enxergar melhor cada gesto.

No fim, acaba-se lendo os códigos do nô livremente, imaginando novos significados para eles – o que faz com que a rigidez dessa forma de arte seja quebrada na ponta final, da recepção.

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