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Saiba mais sobre a relação entre Estado e mercados |
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A nova onda de Barack Obama

Em 1956, o historiador Arthur Schlesinger escreveu um artigo em que tentava explicar aos europeus o que era o liberalismo norte-americano. "De certa forma, toda a América é liberalismo", começava o texto. Sem revoluções sociais, como na Europa, os Estados Unidos fundaram um sistema político em que os principais partidos concordam com ideias básicas que só podiam receber o nome de liberalismo. Democratas e republicanos, argumenta Schlesinger, tinham um consenso que embasava uma espécie de discordância criativa em que liberais (democratas) eram mais abertos a mudanças rápidas do que os conservadores (republicanos).

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Filosofia ficou à sombra do Estado no Brasil

O liberalismo no Brasil nunca teve seu grande momento, apesar de ter exercido uma influência forte na doutrina legal do país. Na política, foram mais de 60 anos de administração imperial permeável aos interesses de uma pequena oligarquia que também conseguiu manejar o funcionamento da República Velha. Em seguida, veio uma revolução populista sucedida por uma ditadura, 20 anos de democracia conturbada, outros 20 de ditadura e, enfim, a democracia. Assim, a experiência brasileira como democracia liberal não é das mais longas.

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O último rumor que corre na região de Nottinghamshire, no centro da Inglaterra, é que algumas minas de carvão serão reabertas. É mais uma ironia do que um boato. As minas ficam a poucos quilômetros da pequena cidade de Grantham, onde nasceu a filha do dono de um mercadinho que há exatos 30 anos se tornou a primeira mulher a ocupar o posto de primeira-ministra da Grã-Bretanha: Margaret Thatcher. A ironia de Nottinghamshire é que as minas de carvão foram fechadas nos anos 80, ao fim de uma longa disputa entre o governo Thatcher e sindicatos que se tornou o símbolo de uma virada econômica liberal tida por muitos como a semente da atual crise econômica.

Na década de 70, a Grã-Bretanha apresentava inflação e desemprego altos. Os serviços essenciais, todos estatais, tinham qualidade sofrível, enquanto sindicatos emparedavam governo e empresas. O mais forte era o dos mineiros. Poderoso a ponto de derrubar o primeiro-ministro conservador Edward Heath na greve histórica de 1974. Thatcher assumiu em 1979 com uma plataforma de reformas que decolou em 1984, quando ela decidiu enfrentar os mineiros. Ela queria, e conseguiu, fechar minas que custavam uma fortuna em subsídios. Aos poucos, o poder dos sindicatos degringolou, o que abriu espaço para um amplo programa de privatizações.

Thatcher colocava em prática os ensinamentos de seu livro de cabeceira, O Caminho para a Servidão, de Friedrich von Hayek. Juntamente com outros pensadores liberais, Hayek passara mais de 40 anos fazendo campanha contra a expansão do Estado. Suas ideias encontraram recepção calorosa na Universidade de Chicago, nos Estados Unidos, onde outro economista, Milton Friedman, ficou bastante popular. Seu livro mais conhecido, Capitalismo e Liberdade, desafiava o pensamento dominante da época, o keynesianismo, com uma simplicidade didática. Friedman não queria o Estado gerindo empresas, preços, ou decidindo sobre aposentadorias. Preferia soluções via mercado e prometia domar a inflação com uma boa gestão do banco central e uma economia livre.

Na política norte-americana, algumas dessas ideias foram absorvidas pelo Partido Republicano durante a campanha de Ronald Reagan, eleito presidente em 1980. Ele foi uma espécie de cara-metade de Thatcher. Com a diferença de que o liberalismo de mercado foi associado ao conservadorismo político. Mas a economia tendeu, de qualquer forma, a uma redução no poder dos sindicatos, liberalização de mercados e menor intervenção estatal. Para Reagan, a transformação era questão de sobrevivência em meio à Guerra Fria.

Pêndulo

Estado e mercados são – como na Teoria da Gravitação, de outra celebridade da região de Grantham, Isaac Newton – dois corpos que se atraem. Quando o Estado ganha o momento, os mercados passam a gravitar em sua volta. Há momentos em que os mercados ganham força e tentam sair dessa órbita. Mas não há escapatória: arrastam junto o Estado. A fuga impulsionada pela geração de Thatcher e Reagan parece ter chegado ao limite com a crise econômica que empurra o mundo para a recessão. Tanto que agora muita gente acusa o pensamento liberal de ser insustentável.

No entanto, esse comportamento pendular, ora tendendo para o Estado, ora para os mercados, é parte da estratégia de sobrevivência do próprio liberalismo que, como filosofia política, é a defesa da liberdade do indivíduo como direito fundamental – isso inclui sua autonomia para decidir o que fazer da vida e de possuir propriedade para produzir e negociar. Ao longo do tempo, os direitos foram engrossados pela liberdade política e pela igualdade de oportunidade. "Nesse sistema, o Estado existe para proteger esses direitos e por isso precisa ser limitado em seus poderes e em suas funções", explica o cientista político Sérgio Cândido de Mello, professor da Universidade Estadual de Maringá (UEM).

O pêndulo do liberalismo estava na posição de intervenção estatal mínima entre meados do século 19, quando estava em alta o laissez-faire derivado de clássicos como Adam Smith, e o fim da Primeira Guerra. No período entre as guerras, a partir de 1930, o pêndulo caminhou em direção à intervenção maior do Estado. "O capitalismo enfrentava uma crise muito grave, em parte gerada pela falta de controle dos mercados. Foi nesse contexto que surgiu o keynesianismo", lembra Renato Colistete, professor de História Econômica da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (FEA-USP).

O economista John Maynard Keynes mudou o curso do liberalismo ao demonstrar que mercados livres têm imperfeições que podem se tornar arrasadoras. Segundo a teoria keynesiana, há momentos em que a economia entra em desequilíbrios longos, com uma espiral deflacionária e desemprego alto. Foi o que ocorreu na Grande Depressão da década de 30. A solução de Keynes foi uma ação estatal para levar a economia de volta ao pleno emprego. O pêndulo continuou andando no pós-guerra. "A economia americana foi bastante regulada e, no Reino Unido, houve uma série de estatizações depois de 1945", ressalta Colistete.

Foi mais, talvez, do que o próprio Keynes faria. Mas resultou em um período de prosperidade que durou até os anos 70. A estrutura liberal, com liberdades individuais, direito à propriedade e economia de mercado, continuava de pé, só que com mais políticas distributivas. Algo que, em essência, não vai contra o liberalismo. A igualdade de oportunidade, segundo o filósofo norte-americano John Rawls, é uma condição para que as pessoas usufruam da liberdade de escolha.

A crítica ao keynesianismo é que, com o tempo, a presença maciça do Estado colocaria em risco o que ele deveria defender – a liberdade política não sobreviveria sem a liberdade econômica. "Os anos 70 foram férteis para essa corrente, que ficou conhecida como neoliberal. Tanto que após os governos de Reagan e Thatcher se chegou a dizer que havia um pensamento único", observa o cientista político Reginaldo Moraes, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). A oscilação do pêndulo para uma economia mais liberal foi liderada pelo setor financeiro. Em poucos anos, dezenas de países abriram suas economias, em um processo que ficou conhecido como globalização.

A atual crise econômica marca uma nova guinada no pensamento liberal. "O resultado da liberalização nas finanças foi uma maior instabilidade. Está claro agora que os mercados não se autorregulam e, por isso, os controles terão de ser restaurados", afirma Moraes. "As ideias dos anos 30 serão revigoradas, mas hoje os mercados estão muito mais entrelaçados e o controle não poderá ser só nacional."

A virada à esquerda, em direção ao Estado, não jogará fora as lições do passado. Na política, o respeito à lei e a preferência pela democracia não parecem ameaçados no Ocidente, como na década de 30. Na economia, a preferência pela economia de mercado, com direito à propriedade e recompensa à iniciativa individual, ainda é mais forte do que o apelo de experiências socialistas. "Assim como a relação entre Estado e mercados não voltou ao que era antes das guerras, não devemos voltar ao tipo de intervenção do pós-guerra", diz Renato Colistete, da FEA/USP.

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