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Philip Gourevitch é incapaz de ler as tragédias que a imprensa publica todos os dias, dobrar o jornal e seguir com sua vida. Esse temperamento o levou à África em maio de 1995 com a intenção de escrever sobre o genocídio que dizimou a minoria tutsi, vítima dos hutus em Ruanda. Já nessa primeira viagem – ele faria outras cinco ao longo de dois anos –, o repórter percebeu que teria de escrever um livro sobre os fatos. Gostaríamos de Informá-lo de que Amanhã Seremos Mortos com Nossas Famílias (Tradução de José Geraldo Couto. Companhia de Bolso, 352 págs., R$ 23), a obra em questão, esgotada há anos, acaba de ganhar reedição em formato popular.

O texto de Gourevitch é direto, quase fotográfico. Ele não usa palavras como "dizimar" e "genocídio" apenas pelo impacto que podem causar. A abertura do livro – conhecido também pelo subtítulo Histórias de Ruanda – explica o significado de dizimação ("o assassinato de uma em cada dez pessoas de uma população") para lembrar da morte de 800 mil ruandeses – de uma população de 7,5 milhões –, perpetradas em nome do "Poder Hutu", no prazo de cem dias, entre a primavera e o verão de 1994.

Em entrevista por e-mail – é difícil abordá-lo de outra forma –, Gourevitch, vivendo em Nova Iorque, diz que seus livros tratam de histórias em que a maioria da humanidade é flagrada indiferente diante de assassinatos. "Até o ponto da cumplicidade", diz. Um Caso Arquivado, também lançado pela Companhia das Letras, trata de um policial nova-iorquino que decide retomar a investigação sobre um duplo homicídio ocorrido em 1970.

Um dos 22 capítulos de Gostaríamos de Informá-lo... fala sobre o gerente de hotel que conseguiu proteger alguns refugiados até que rebeldes armados pudessem resgatá-los. O episódio está na origem do filme Hotel Ruanda (2004), de Terry George. "Esses rebeldes da Frente Patriótica Ruandesa são os únicos que fizeram alguma coisa contra o genocídio. E o que eles fizeram foi lutar, assassinar e morrer para interromper o que estava acontecendo. Não é necessariamente um quadro bonito, mas sem eles o gerente de hotel também seria um cadáver, ao invés de um personagem em um filme de Hollywood", diz Gourevitch.

Para o autor, a história do gerente hutu que não mata "amplifica a enormidade do crime de seus semelhantes e nos lembra de que não podemos, honestamente, buscar conforto ou segurança na fantasia de que não somos como eles, de que somos bons enquanto todos os outros estão engajados na maldade".

Tanto o gerente de hotel quanto o detetive de Um Caso Arquivado deixam claro que não estão fazendo nada excepcional. "Mas apenas se recusando a seguir um comportamento extraordinariamente mau." O autor não é do tipo que manda mensagens edificantes. "Eu não escrevo assim. Se quero dizer alguma coisa, jamais o faço de modo velado ou subtextual. Esses dois livros são muito sobre a tranqüilidade com que as pessoas cometem assassinatos e os justificam. Nossa calma em nos relacionarmos com tudo isso é o que há de pior na humanidade."

Até mesmo a Organização das Nações Unidas desempenhou um papel classificado por Gourevitch de "idiota" e "perigoso". A mesma ONU que esperava nunca mais ter de usar o termo "genocídio", ou crime contra a humanidade, outra vez (considera-se que três deles marcaram o século 20: dos armênios pelos turcos, dos judeus pelas mãos dos nazistas e o de Ruanda). Quando a FPR conseguiu retomar o controle do país e parar o genocídio, a ONU deu abrigo aos refugiados hutus.

Mais tarde, a FPR, transformada no Exército Ruandês, acabou com os campos de refugiados. "Todos os tipos da ONU debandaram, deixando uma grande bagunça em sua trilha. Hoje ninguém discute que esse foi um capítulo muito ruim da ação ‘humanitária’ internacional. As pessoas que defenderam os maus programas na época, agora se agarram à oportunidade de dizer que eles foram vergonhosos. De suas experiências na Terra, até onde eu sei, eles aprenderam algo próximo de nada."

Descendente de judeus que fugiram do Holocausto, Gourevitch dedica Histórias de Ruanda para os pais. Hoje é editor da revista literária The Paris Review e trabalha com o documentarista Errol Morris (Sob a Névoa da Guerra) em um livro sobre a prisão de Abu Ghraib, no Iraque.

"Eu tento contar histórias significativas do modo mais verda-deiro que puder", define. Quando escreve, parece evitar as vírgulas e encadeia o raciocínio usando "e" no lugar da pontuação, como se aquilo que diz não tivesse fim.

"Eu tento entender corretamente os fatos e os personagens e a história e o contexto e o significado e até as confusões da ação. E se consigo contar a história direito, já é alguma coisa. Não estou assumindo o combate ou prescrevendo-o. Isso seria muita arrogância – ir a Ruanda por dois anos e fingir que está arrumando o lugar. Basta ser informativo e ajudar as pessoas a pensar sobre algo que muitos de nós, de outra forma, ignoraríamos. Se eu puder contribuir um pouco para reduzir o nível de decepção que a humanidade se impõe, eu sentiria que meu trabalho valeu a pena."

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