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Um doutorado hoje em dia dura quatro anos, e há uma considerável pressão (as contas..) para que ele venha cada vez mais cedo. E isso tem seu preço.

Por isso é mais do que feliz quando alguém como Luís Bueno, professor de Literatura Brasileira da UFPR, apesar de ter defendido seu trabalho antes dos 40 anos, dá ouvidos ao que de fáustico e quixótico possa ainda existir na Academia e decide dar à luz um trabalho simplesmente monumental como este Uma História do Romance de 30, que agora sai em livro.

Pra começar o indivíduo já disse a que vinha: começou por decidir ler tudo.

Todos os romances publicados entre 1930 e 39 em que ele conseguiu pôr as mãos. E não foi pouco.

Sua bibliografia lista 129 romances lidos de cabo a rabo. Na verdade, ele é capaz de afirmar a respeito de determinado romance: este eu só li uma vez. Na maior parte dos casos ele leu, releu e releu...

Mais que isso, ele lutou para localizar e consultar tudo o que se produziu de crítica literária naqueles anos. Mesmo quando isso representava um trabalho às antigas, com idas diárias a várias bibliotecas, viagens de trabalho e longas sessões de cópia manual de documentos raros inxerocáveis.

Aí é que ele se julgou pronto a realizar seu painel. Sua história.

E o resultado de um mergulho tão compreensivo é um retrato fascinante e original.

Vida intelectual

A primeira impressão que fica é de uma incrível vitalidade: muitos romances, muito alinhados com o que de mais novo havia nas discussões estéticas e políticas do momento. E o que pareceria só modismo pode virar coerência histórica.

E é o fato de ele centrar no romance sua investigação que traz à luz o quanto pôde haver de fundador naquele momento. Depois de feitos os devidos e devidamente espetaculosos questionamentos do primeiro Modernismo, coube a esses escritores o papel de finalmente tentar pacificar as discussões em torno da autenticidade da nossa literatura e, mais ainda, da descoberta do Brasil pelo Brasil.

Se Macunaíma e seu espírito antropofágico-carnavalesco podem sintetizar o que a prosa da geração de 22 ofereceu como resposta a essas questões, a situação nos anos 30 era menos colorida, necessariamente mais presa à realidade de um país que, também politicamente, passava por uma reinvenção, por uma redefinição, oscilando entre o integralismo, as ameaças comunistas, o varguismo.

Dúvida

O mundo do entre-guerras era um lugar instável. E é em torno da noção de dúvida que Bueno organiza seu livro.

Ora, dúvida, que dúvida?

Dúvida em relação ao estar-no-mundo, aos posicionamentos políticos, sim..

Mas especialmente em relação ao outro, aquele que há de ser o motor de toda a literatura romanesca, que se funda na possibilidade do acesso a outras consciências. Daí o vigor dessa prosa. E daí o poder da leitura de Luís Bueno. Leitura do essencial.

Seu livro se fecha com leituras detalhadas de quatro autores singulares (Cornélio Penna, Cyro dos Anjos, Dyonélio Machado e Graciliano Ramos), que coroam o movimento que este livro talvez apresente como sua maior contribuição: de uma literatura que deixa o embate da forma (embora não o abandone) e se entrega ao mistério que é o outro, o diferente, o estranho.

Que pode ser a mulher, o nordestino, o pobre, o negro, o ignorante, o deslocado. Pode mesmo ser o próprio intelectual, pasmado diante de um mundo que não se pode mais escamotear.

E foi nesse enfrentamento, no longo processo de aprendizagem que foi a assimilação do mundo inteiro pela classe que produzia literatura, que o romance da geração de 30 pôde ir muito além da calma divisão entre regionalismo e romance psicológico com que por vezes nos livramos dele.

(E é pena. Um livro de mais de 700 páginas, com tema tão amplo, terá certamente destino de obra de consulta, tarefa que cumprirá galhardamente. Mas é pena. É apenas a leitura da obra em sua seqüência que revela o verdadeiro perfil que Bueno descobre, o ritmo que desencava daquela produção.)

Houve naqueles anos literatura panfletária?

Certo. Mas a dúvida restava maior.

Houve livros que babassem carambolas e macaxeiras pelo que nisso havia de chic?

Não há dúvida. Mas pôde o exótico também ser confronto legítimo.

Guiado por Bueno, o leitor pode superar o lugar-comum e enxergar o processo em que nitidamente se forma a prosa de ficção brasileira. Processo que, como frisa o autor, condiciona e prepara mesmo as famosas figuras ímpares de Guimarães Rosa e Clarice Lispector. (E quer mais interesse pelo outro que o de André Sant’Anna, hoje?)

Pois ele olha para um período freqüentemente reduzido a mero estereótipo e nele vê um embate furioso que determinou um modo brasileiro de ver o outro, um outro também irrevogavelmente brasileiro.

A formação de toda uma literatura.

E de quebra ele ainda te presenteia com toda uma lista de prosadores menos lembrados pelos cânones, mas eventualmente fundamentais e no mínimo sofisticados, de Lúcia Miguel Pereira a José Geraldo Carneiro... de Armando Fontes a João Alphonsus...

Muito mais que Jorge Amado, meu amigo. Muito mais.

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