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Fotorreportagem de Jean Manzon e David Nasser resultou na cassação do deputado getulista Barreto Pinto, retratado apenas de ceroulas e casaca; Adolpho Bloch, líder do clã que fez fama e fortuna no ramo gráfico e editorial do país com a revista Manchete de 1952 a 2000 | Jean  Manzon/ Reprodução; Arquivo familiar/ Divulgação
Fotorreportagem de Jean Manzon e David Nasser resultou na cassação do deputado getulista Barreto Pinto, retratado apenas de ceroulas e casaca; Adolpho Bloch, líder do clã que fez fama e fortuna no ramo gráfico e editorial do país com a revista Manchete de 1952 a 2000| Foto: Jean Manzon/ Reprodução; Arquivo familiar/ Divulgação

Linha do tempo

Saiba mais sobre as histórias das revistas O Cruzeiro e Manchete:

1923 – Os Bloch criam a gráfica Joseph Bloch & Filhos.

1924 – Início da cadeia Diários Associados, que chegaria a ser formada por 90 empresas.

1928 – Sai primeira edição de O Cruzeiro. Capa é pastiche da revista Life, publicada um ano antes.

1936-1938 – Grandes revistas como Life, Match e Picture Post adotam o gênero fotor-reportagem.

1943 – Reforma gráfica e editorial põe O Cruzeiro na dianteira do fotojornalismo e da fotorreportagem. Freddy Chateaubriand, sobrinho de Chatô, contrata o fotógrafo francês Jean Manzon.

1951 – Samuel Wainer funda o jornal Última Hora, com apoio de Getúlio Vargas.

1952 – Adolpho Bloch lança a revista Manchete.

1954 – O Cruzeiro atinge a média de 720 mil exemplares. País tinha 52 milhões de habitantes. Dois anos depois, tiragem começa a cair.

1960 – Assis Chateaubriand sofre acidente vascular cerebral que o manteria quase imóvel por oito anos. Revista Manchete, da família Bloch, ascende no mercado e supera as tiragens de O Cruzeiro.

1961 – Cobertura da inauguração de Brasília faz Manchete vender 500 mil exemplares em dois dias.

1966 – Começa a circular a revista Realidade, do grupo Civita. Chega a vender 500 mil exemplares.

1968 – Morre Assis Chateaubriand. Criação da revista Veja.

1975 – O Cruzeiro deixa de circular. Terá uma sobrevida de 1977 a 1983.

1995 – Morre Adolpho Bloch.

2000 – Manchete sai de circulação.

2008 – Revista Veja chega à tiragem de 1,2 milhão de exemplares.

Fontes: História da Imprensa no Brasil, de Ana Luiza Martins e Tania Regina de Luca (Ed. Contexto); Revistas, organização de Humberto Werneck (Ed. Abril); Jornal, História e Técnica, de Juarez Bahia (Ed. Mauad).

Niskier ainda sonha com a Manchete

Para jornalista, revista de Adolpho Bloch bem poderia circular no Brasil dos anos 2000 e se manter no posto hoje ocupado pela Caras

O jornalista Arnaldo Niskier, 77 anos, podia jurar que a revista Manchete jamais iria acabar. Tinha motivos para tanto. Nas quase quatro décadas em que desfrutou da intimidade do publisher Adolpho Bloch e do editor Justino Martins – mito máximo e inconteste da publicação –, assistiu de perto não só a feitura de um produto que fazia sucessos nas bancas: meninos, ele viu uma experiência editorial da qual não gostaria de se apartar, pois não a encontraria em nenhum outro lugar. "Aquilo era ourivesaria pura", diz o autor de Memórias de um Sobrevivente – A Verdadeira História da Ascensão e Queda da Manchete, lançado ano passado pela Editora Nova Fronteira.

O livro de Niskier – que é membro da Academia Brasileira de Letras – já nasceu como referência obrigatória para o estudo de revistas no país. Ao lado de Carlos Heitor Cony e de Roberto Muggiati, para citar dois longevos e resistentes escribas da casa, o autor é capaz de organizar, com a pena precisa de jornalista, tanto suas lembranças quanto o sentido que a Manchete teve para a imprensa. A química entre esses dois elementos resulta em puro prazer. Arnaldo nos leva para o "fechamento" da revista – jargão para o momento da paginação e edição –, para a companhia de sua tropa de elite e para perto da figura impagável de Adolpho Bloch.

"O Bloch era difícil. Mas ele dizia que qualquer raiva que durasse mais de três minutos era patológica", conta, a respeito dos humores infernais do chefe. Depois de um arranca-rabo qualquer, o dono da Manchete dava garrafas de uísques aos funcionários com os quais havia se desentendido. As bebidas eram retiradas de uma reserva, feita para essas ocasiões. Em miúdos, não se espere de Niskier que ele diga ser o gênio de Bloch o motivo da derrocada da revista. Ou mesmo que o título não poderia circular ainda hoje, belo e formoso. "Por que não? A Manchete não acabou por causa de sua qualidade, mas por problemas de administração", rebate. Ele se demitiu oito anos antes da falência e não tem passivos com a massa falida da Bloch Editores.

O trunfo de sua tese, ora, é o público. Os compradores de banca queriam uma revista ilustrada, bem paginada, bem impressa. Bloch entendeu esse desejo e criou a Manchete. Durante a ditadura militar, cresce o interesse por uma publicação que trouxesse também bons textos, no que os leitores, de acordo com Niskier, foram prontamente atendidos: Manchete faz seu ajuste editorial e se torna, digamos, mais relevante, com reportagens que promoviam a descoberta do Brasil desconhecido. "A revista Realidade fazia isso? Ora, fazia, mas não sobreviveu", rebate, ao ser indagado sobre a sombra da revista mais cultuada da história da imprensa nacional.

A personalidade de Bloch ajudava – ainda que debaixo de controvérsias –, mas não havia como ignorar a figura de Justino Martins. "Era um revisteiro, como dizíamos", conta, sobre o editor que, a seu ver, criou nos bastidores daquele veículo de imprensa uma "fraternidade inteligente". "O Martins fez um cinema fotográfico na Manchete", resume, sobre o refinamento na edição de imagens. A expectativa a cada semana era saber quem estaria na capa. Leila Diniz, por exemplo, uma das muitas com quem a turma da redação podia conversar, nos bastidores. Nesse caso, claro, com licença para dizer palavrões.

Durante muito tempo vingou na Manchete que homem na capa encalhava revista. Quando o jogador italiano Sandro Mazolla teve essa honra [em 1958], provocou um encalhe de 43%. E se a escolha feminina não fosse boa o bastante, o prejuízo ficava na casa dos 15%. Dá para imaginar o frenesi a cada semana, sempre com o aval de Bloch, que nos dizeres de Niskier "era um gênio, tinha olho crítico de gráfico". A propósito, o autor diz que não passa uma semana sem sonhar com os tempos da Manchete. A contar pelo interesse que a revista tem suscitado, não é mais um privilégio dele.

  • Getúlio Vargas, em seu gabinete, retratado por Jean Manzon em 1940: relações instáveis com O Cruzeiro
  • Manchetinha, a dálmata da família Bloch e melhor amiga de Adolpho
  • Fotojornalismo brasileiro viveu seu período áureo nas páginas de O Cruzeiro

Durante quase todo o século 20, brasileiros das mais diversas castas e níveis de escolaridade praticaram um "esporte" muito particular – iam às bancas comprar sua revista da semana. E o faziam aos milhares, gerando índices de vendagens que até hoje fazem muitos se beliscar. Mas era tudo verdade.

Mesmo que se argumente que o Instituto de Verificação de Circulação, o IVC, só tenha surgido em 1961, o que pode colocar sob suspeita os números divulgados pelos barões da imprensa de então, os testemunhos de jornalistas e do próprio público não deixam enganar. Viveu-se aqui um fenômeno editorial, cuja estranheza é ainda maior quando se põe na conta que até meados da década de 1960 os índices de analfabetismo no Brasil grassavam metade da população. Colocando-se na conta de que entre os alfabetizados havia também os "alfabetizados funcionais", os dados ficam mais impressionantes.

Revistas como O Cruzeiro, criada em 1928; Manchete, de 1952; e Realidade, de 1966, chegaram a picos de venda de 700 e 500 mil exemplares. É temerário desprezar esses índices e o que eles representam na formação do público leitor no país. Mas a esquizofrenia nacional cultiva o desprezo. Das três revistas que podem ajudar a entender o comportamento, consumo e cultura de recepção da informação, apenas a Realidade pode se gabar de ser alvo de estudos contínuos e profundos.

Há uma verdadeira biblioteca para explicá-la, a exemplo dos recentes Realidade Re-Vista (Ed. Realejo), de José Hamílton Ribeiro e José Carlos Marão – repórteres da publicação –; e Realidade – História da Revista Que virou Lenda (Ed. Insular), de Mylton Severiano. A merecida investigação da Realidade, contudo, parece gerar um efeito colateral: a dedução de que as duas publicações mais populares do período, suas contemporâneas, não passam de um rodapé da história.

Mesmo nas análises mais abrangentes sobre a produção e circulação de revistas no Brasil, o espaço desconfortável de O Cruzeiro e Manchete se confirma. E muito tem se publicado a respeito, a exemplo das pesquisas de Mônica Velloso, Tânia Regina de Luca, Ana Luiza Martins e Dulcília Buitoni, para citar alguns nomes de ponta.

Hoje é possível mapear o país que, de alguma forma, se civilizou no início do século passado ao ler revistas como a Fon-Fon, Careta e O Malho. Mas permanece a dificuldade de pensar tanto O Cruzeiro quanto a Manchete para além de seus idealizadores e suas relações com o poder – a dizer: Assis Chateaubriand e Adolpho Bloch, envoltos em relações perigosas com Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek.

Algumas publicações recentes parecem desafiar essa tendência à amnésia, pondo à baila o trabalho de acadêmicos e memorialistas que agiam quase em segredo. E chamando atenção para investigações anteriores, como O Império de Papel: os Bastidores de O Cruzeiro, de Accioly Netto. "Carecemos de dados", diriam os mais cautelosos. Mas é grande a tentação de afirmar que esse olhar mais generoso para com os dois maiores sucessos editoriais da história do país coincide com o momento de transição da imprensa escrita, às voltas com o impacto provocado pela internet e pelas redes sociais. Quer-se pistas do passado. É o que parece.

O resultado tem sido um deleite, com pitadas de nostalgia. Colecionistas dessas revistas brotam do chão, contando por que guardaram tantas "ilustradas" em sua casa, à revelia dos protestos familiares e dos espaços cada vez menores. As novas gerações, que não passaram pelo período, esbugalham os olhos diante da paginação primorosa. As fotorreportagens de outrora, como que saídas das sombras, confirmam o que já se dizia a boca pequena – O Cruzeiro e a Manchete ajudaram a descobrir o Brasil.

É o bastante para começar a conversa.

Entrevista: Arnaldo Bloch, Jornalista e escritor"Só tenho a lamentar"

O se referir aos judeus ucranianos Bóris, Arnaldo e Adolpho Bloch, o jornalista Otto Lara Resende teria dito que formavam "uma família solidamente unida pela desunião". Também foi Otto, o frasista, a chamá-los de "os irmãos Karamabloch", brincadeira que deu título ao livro do jornalista e escritor Arnaldo Bloch, lançado em 2008, pela editora Companhia das Letras.

Neto de Arnaldo, de quem herdou o nome, o autor mostrou que é tão bom em graça quanto Resende. Enquanto narra a saga de uma família que faz fama e fortuna no ramo gráfico e editorial do Brasil, o autor diverte o leitor com inconfidências que só os parentes conhecem, contadas debaixo da imbatível verve judaica.

No centro da cena, sem remédio, está Adolpho Bloch, o líder do clã, um sujeito histriônico, sempre a um palmo do amor e do ódio. E é por intermédio dele que Arnaldo acaba tratando da ascensão e queda da Manchete, a revista que lançada em 1952 desbancou a hegemonia de mercado de O Cruzeiro. Na narrativa, a picture magazine não é vista do prisma dos estudos de comunicação, nem poderia.

O que se tem é a oportunidade de passar pelos quartos e salas dos Bloch, roçar a mão no pêlo da dálmata Manchetinha, a melhor amiga de Adolpho, e pôr o pé na Rua do Russell, no Rio de Janeiro, onde funcionava a luxuosa sede do grupo, para ali acompanhar um daqueles fechamentos em que o "chefe" mastigava as fotografias das quais não havia gostado, em desagravo, "e tomando o cuidado para não engoli-las", como se dizia.

Não é exagero dizer que a prosa de Arnaldo Bloch deu um empurrão no revisionismo sobre o papel da Manchete, uma revista que, como sugere ele, levou para a tumba uma época e um estilo, ao parar de circular no simbólico ano 2000.

Haveria lugar na imprensa de hoje para uma revista como a Manchete?

Não creio que haja. Pelo menos, não numa perspectiva de grandes tiragens. O grande público de hoje não está interessado na contemplação. Só quer se informar rápido e surfar pelos fatos e fotos, sem trocadilho.

O que você mais gosta e o que menos gosta na Manchete?

Gosto da excelência gráfica e de fotos. Gosto da prática de um estilo que se extinguiu: da grande reportagem de páginas sangradas e muitas páginas. O cuidado com a qualidade do texto e das fotos, a preciosidade da redação. Não esquecer que Manchete tinha uma sala de reportagem e outra de redação. Por ela passaram os maiores jornalistas, escritores e cronistas que o Brasil teve. E tudo aquilo que as picture magazines, como Life, Paris Match tinham: dinamismo, aprofundamento, arte.

O que menos gosto? O adesionismo exacerbado ao regime militar após o golpe e o superficialismo crescente após o advento da tevê.

Escreve-se muito sobre a revista Realidade, e sobre as publicações da imprensa em formação, do início do século 20. Manchete ainda não é história?

Discordo da ideia de que Manchete não ficou na história. Claro que ficou. É citada frequentemente por artistas, políticos, historiadores, e qualquer pessoa preocupada com memória. Livros e compêndios de crônicas de Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Rubem Braga, Nelson Rodrigues, Cony, têm, frequentemente, créditos à Manchete. Gente que viveu a época refere-se à Manchete.

Acusam-na de superficial...

É uma afirmação ambígua. Manchete se aprofundou em diversas questões, mas não as políticas, a partir de 1964. Antes, era uma revista muito mais aberta. Ainda assim, não é do caráter das picture magazines em geral o aprofundamento político. Ser calcada em fotos não é um defeito em si. Dizer que é vira um tipo de preconceito. Porém, como já disse, incomodou-me, sempre, o adesismo exacerbado, para além do que a censura exigia. Isso, certamente, pesou contra o prestígio de Manchete.

Os concursos de misses e os assuntos da realeza, por outro lado, eram apenas uma parte da pauta. Havia reportagens sobre cultura, perfis, aventuras, viagens à Amazônia, crônicas de grandes escritores, coberturas de esportes, muito bem cobertas e bem escritas. O texto, hoje em dia, é subvalorizado. Se compararmos Manchete com Caras, por exemplo – de alguma maneira, o tipo de revista que sucedeu às picture magazines tradicionais –, ficará claro o quanto a qualidade da pauta, das fotos e dos textos decaiu.

Já se falou bastante dos estragos causados pelo personalismo dos antigos barões da imprensa brasileira. Apesar disso, faz falta à imprensa de hoje figuras marcantes, como os Bloch?

Estamos numa fase com menos personalidade de uma maneira geral. Acho, porém, que os publishers de hoje continuam envolvidos nas linhas gerais dos produtos e na visão política, e que essa discrição só existe do ponto de vista de eles aparecerem menos com sua face pública. O romantismo das redações de antigamente era interessante, mas não era saudável: a interferência direta dos barões na rotina gerou muitas histórias para o folclore, mas traumatizou muita gente e deixou no ostracismo trabalhos interessantes.

Em crônica recente, o jornalista Ruy Castro lembrou a importância dos fotógrafos na redação da Manchete, em detrimento dos repórteres, como ele diz. Em que o fotojornalismo da Manchete lhe parece mais relevante?

Manchete percorreu em imagens tudo de importante que aconteceu entre os anos 1950 e a virada do milênio, no Brasil e no mundo. Além da produção própria de fotos, compraram-se vários acervos particulares, de forma que essa cobertura se estendeu às décadas anteriores à inauguração da revista, em 1952. O acervo, pelos desmandos com que foi administrado pela massa falida e pelos ex-sócios, está degradado e dilapidado e passou anos sob o calor, o que é fatal quando se trata de cromos. A maior parte das fotos eram slides. Não conheço seu estado exato. Seja como for, vai precisar de restauros por vezes impraticáveis e digitalização. Só tenho a lamentar.

Entrevista: Helouise Costa, arquiteta e curadora do Museu de Arte Contemporânea da USP "Não sabemos se o fotojornalismo acabou"

Em meados da década de 1990, o nome da arquiteta Helouise Costa despontou no cenário das artes visuais. Trazia novidades. Ela não se acotovelava entre os críticos habituais, estudiosos de escolas, linguagens e artistas consagrados, mas se firmava num território até então pouco explorado – o fotojornalismo. Logo mostrou a que vinha, tirando do limbo um assunto fadado à informalidade das redações de jornal e de magazines.

Além de se debruçar sobre as contribuições dos fotoclubes – no qual o Paraná teve seus dias de glória, ao lado de São Paulo – Helouise apontou tendências e invenções nas tarefas diárias de fotógrafos que saíam às ruas para cumprir pautas. Tornou-se uma autoridade em Jean Manzon, o francês radicado no Brasil na década de 1940, sem o qual não se pode contar a história da imprensa brasileira. Investigou o fascínio dos repórteres fotográficos pela técnica, com que tradições europeias e norte-americanas dialogavam e de que modo contribuíram para garantir o público dos impressos no país.

Ano passado, como era aguardado, a pesquisa de Helouise ganhou notoriedade para além dos círculos ilustrados. Ao lado de Sérgio Burgi e mais um grupo de pesquisadores de proa, montou a exposição As Origens do Fotojornalismo no Brasil: um Olhar sobre O Cruzeiro (1940-1960), em cartaz no Instituto Moreira Salles, em São Paulo. O trabalho – com imagens agora em poder do jornal O Estado de Minas – veio acompanhado de um livro seminal, com o mesmo nome, com o melhor da revista que por quase cinco décadas foi o vademécum de milhares de brasileiros.

Milhares – em 1954, O Cruzeiro teria chegado a vender 720 mil exemplares, marca quase inimaginável no país de hoje 190 milhões de habitantes. Era colecionada, por pais que viam nas edições uma versão tupiniquim das melhores enciclopédias do mundo. Talvez não estivessem enganados.

Confira trechos da entrevista com a pesquisadora.

A imprensa brasileira permanece perseguindo as glórias de O Cruzeiro?

Não vejo O Cruzeiro quando folheio uma revista brasileira da atualidade. Estamos num momento de transição. Não sabemos se o fotojornalismo acabou. Naquele momento, a fotografia tinha credibilidade. Era reveladora do mundo. Mostrava o que a gente não sabia. Permitia ver o que já conhecíamos a partir de outros pontos de vista. Havia magia e encantamento. Hoje em dia, nossa primeira atitude é duvidar da imagem. É um registro ou não? O próprio ato de fotografar se esgarçou. Todo mundo pode fazê-lo e há pessoas comuns que o fazem de maneira mais interessante do que os profissionais.

Por outro lado, perdeu-se a leitura intensiva – a capacidade de olhar bastante tempo para uma fotografia...

... revistas como O Cruzeiro eram colecionadas. Até hoje conseguimos comprar exemplares do período, pois foram guardadas como um documento. As publicações estrangeiras, aliás, estimulavam o colecionismo. Havia caixas para acondicionar as edições. A Life é um exemplo de publicação que jogava com a ideia de que a revista tinha o papel da enciclopédia. Uma enciclopédia visual.

Há alguma relação entre um país de baixa escolaridade e o êxito comercial de uma revista ilustrada? O fenômeno O Cruzeiro teve a ver sobretudo com a condição dos leitores brasileiros?

É uma pergunta difícil de responder. A disseminação desse tipo de revista era um fenômeno internacional. Há casos parecidos na Inglaterra, França e Estados Unidos. Cada um desses países teve um modelo de revista ilustrada forte, de grande circulação, e o analfabetismo não era um problema para eles. De fato, existem pesquisas que apontam para a existência de "leitores" analfabetos que tinham acesso à informação por meio de revistas no Brasil. O Ibope, na época, chegou a fazer uma contabilidade sobre esse público.

A cúpula de O Cruzeiro tinha noção de até que ponto a tiragem poderia chegar?

Percebe-se na história da revista um investimento crescente em equipamentos, em tecnologia, em profissionais. Isso aponta para o entendimento de um mercado potencial muito grande. A reforma editorial de O Cruzeiro, em 1943, foi feita rumo ao mercado internacional. Até o início dos anos 1950, a revista salta de dois fotógrafos para cerca de 20. A empresa, claro, acreditava que o negócio era lucrativo.

Dizem que o status dos fotógrafos chegou a ser maior do que o dos jornalistas...

Pelos depoimentos de gente como Flávio Damm e Luiz Carlos Barreto, O Cruzeiro dava atenção especial para o fotógrafo. É a primeira publicação que lhes dá crédito nas páginas e passa a chamá-los de repórter fotográfico, colocando-os no nível do jornalista. Os salários também mostram a valorização e profissionalização da atividade fotográfica. É um período áureo. O francês Jean Manzon inaugura essa fase. Tinha formação. Andava sempre de terno. Frequentava a alta burguesia, o que era raro no nosso meio. Na Europa, já nos anos 20 e 30 havia fotógrafos formados nas universidades. Aqui, eram técnicos e gráficos que passavam a fazer fotografia de uma forma aleatória. Houve uma mudança de estatuto.

A fotografia passa a determinar a pauta em algum momento?

Flávio Damm conta que a equipe fazia reuniões semanais, lia as cartas dos leitores e escolhia as que tinham maior potencial fotográfico. Nos anos 1950, o fotógrafo também começa a escrever. Foi assim com José Medeiros, Manzon, Damm, Luiz Carlos Barreto, Luciano Carneiro, principalmente quando eram mandados para missões fora do Brasil.

Foto de estúdio, de moda... De qual formação vinham os fotógrafos de O Cruzeiro?

Os estrangeiros chegam com muita informação técnica e cultural. O Manzon tinha trabalhado na Match e na Vu. Transitava na fotografia francesa e traz para cá um repertório da linguagem construtiva e surrealista. No Brasil, o aprendizado é autodidata. Na redação, o José Medeiros teve um papel formador e orientava os profissionais. Chegou a publicar uma coluna de aconselhamento técnico sobre fotografia na revista Cigarra, que era do grupo dos Diários Associados. Era incomum. Naquela época, o único lugar em que se encontrava esse tipo de informação era nos fotoclubes.

Em seus estudos, você trata de um certo "desbunde" das revistas brasileiras da primeira metade do século com a tecnologia e com o discurso científico. O Cruzeiro conseguiu passar da fase do deslumbramento para a da linguagem?

Vejo que a revista tinha um compromisso de mercado, uma produção padronizada, com o documental, mas dava espaço para a experimentação. Há uma reportagem do José Oiticica Filho fotografando os insetos, por exemplo...

E quanto à montagem de cenas para serem fotografadas...

O fotojornalismo encenado é predominante nos anos 1940, bem à moda de Jean Manzon, mas no final daquela década vamos ter a prevalência do instantâneo. Há um fato determinante nessa mudança: vários fotógrafos daquela geração trabalharam como correspondentes estrangeiros. O Luciano Carneiro ficou na França muito tempo. O Luiz Carlos Barreto também. Lá entraram em contato com a agência Magnum e com o fotojornalismo mais heroico, que busca a verdade na rua e não na fotografia encenada.

Fala-se do papel do advento da tevê na perda de impacto de O Cruzeiro. É uma questão relevante?

Sim, mas não dá para dizer que a televisão seja a responsável pela falência das revistas... É mais amplo. A fotorreportagem tinha uma linguagem analítica dos acontecimentos, desdobrava um fato em muitas imagens. A televisão vai ocupar esse papel de maneira mais dinâmica. Tanto é que as revistas passam a ser mais sintéticas depois da tevê. Não é mais análise, agora é síntese. A verba de publicidade migra para as emissoras. Mas há em paralelo o esgotamento de um modelo que tinha um caráter de descoberta, de revelação por intermédio da fotografia. A fotorreportagem ficou estereotipada, presa à exploração de dualismos como "o bem contra o mal", "o selvagem e o civilizado". Esgotou.

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