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Livro

Um contato com a África, essa estranha

Primeiro livro traduzido no Brasil do dramaturgo nigeriano Wole Soyinka permite espiar pelo buraco da fechadura um mundo muito diferente

Soyinka se tornou uma voz em prol da modernização africana | Divulgação
Soyinka se tornou uma voz em prol da modernização africana (Foto: Divulgação)

A chegada tardia ao Brasil de uma tradução do dramaturgo nigeriano Wole Soyinka, 26 anos após a láurea do Prêmio Nobel, não implica um menor estranhamento em relação ao universo que ele retrata: o continente africano continua sendo quase outro planeta para nós.

VÍDEO: Veja trechos da montagem de ‘O Leão e a Joia

A arte africana reflete inquietações sobre seus próprios projetos e rumos, nunca estabilizados desde o fim dos domínios coloniais. Quando O Leão e a Joia foi publicado, em 1963, essa era uma realidade ainda mais gritante.

O fato de se tratar de um texto para teatro ajuda a torná-lo vivo ao som de tambores e canções em roda, mas nada permite prever o desfecho desse triângulo amoroso que lembra de longe Nelson Rodrigues – um universo onde a mulher quer ser dominada, talvez para dominar o homem pelo lado de dentro – e onde o sexo é o motor principal.

Numa aldeia de origem iorubá, na Nigéria, um professor de escola, Lakunle, se considera um messias da civilização. Dá aulas em sua choupana vestido em camisa e gravata, fala palavras difíceis e critica diversos costumes locais – especialmente o pagamento do dote por parte do noivo à família da noiva, principal impedimento entre ele e a bela Sidi, a joia da vila. Além de exigir o dinheiro, coisa que ele se diz moralmente impedido de prover, a garota o despreza pela ruptura cultural que representa.

O curioso é que, quando descobre que a pretendida já não é virgem, Lakunle fica desconcertado e sai afirmando que, pelo menos, poderá ser dispensado do dote.

Quando chega à cidadezinha uma revista em que Sidi é retratada como símbolo sexual, fruto da passagem de um fotógrado pela localidade, o "passe" da jovem aumenta e ela é requisitada pelo chefe ("bale") da tribo.

Dono de um harém chefiado pela primeira esposa, Sadiku, o sexagenário é temido como um leão no ataque. Atrai a jovem com o boato de que está impotente – ela acha que poderá humilhá-lo. Aqui, a loucura rodriguiana invade a selva e surge o choque cultural.

Talvez Sidi se mostre perversa, porque, na verdade, representa toda a África, com tradições empedernidas. De um lado, é assediada pela europeização proposta pelo professor. Do outro, pela oportunidade de entrar de cabeça numa concepção "selvagem" de mundo, rejeitando tudo o que for diferente.

As leituras costumeiras do texto mostram que este é o dilema do continente africano, em meio a seu chamado renascimento: a dúvida entre adotar um modelo importado ou permanecer em tradições nem sempre benéficas. Fala-se na "modernização da tradição" como uma opção melhor.

Essas são propostas que Soyinka, considerado o principal dramaturgo africano, aborda em sua obra. Essas convicções políticas lhe renderam um aprisionamento de 22 meses, em 1967, e um forçado exílio para os Estados Unidos, onde vive. Prestes a completar 78 anos, apenas recentemente voltou a visitar seu país.

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