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Casa dos Budas Ditosos

João Ubaldo Ribeiro. Alfaguara, 164 págs., R$ 36,90.

Viva o Povo Brasileiro

João Ubaldo Ribeiro. Alfaguara, 640 págs., R$ 69,90.

Sargento Getúlio

João Ubaldo Ribeiro. Alfaguara, 168 págs., R$ 36,90.

Em A Arte Poética, lá dos recantos do século 1 antes de Cristo, o filósofo romano Horácio dizia, de modo pessimista, que estamos condenados à morte nós e nossas obras. Nada mais equivocado se considerarmos a dimensão da carreira literária e jornalística de João Ubaldo Ribeiro, que morreu na madrugada desta sexta-feira, no Rio de Janeiro, aos 73 anos, vítima de embolia pulmonar.

Ocupante da cadeira 34 da Academia Brasileira de Letras, João Ubaldo Ribeiro foi um desses escritores que ressignificaram a literatura brasileira e a modernizaram. Ele trouxe um novo jeito de olhar nossa trajetória histórica, estudar a nossa identidade – o que nos compõe como pertencente a um país e às suas condições concretas – e, sobretudo, a marca de um escritor que pouco se importou com as convenções quando o negócio era a busca por contar uma boa história.

Autor de mais de 20 livros, ele teve em sua extensa produção como romancista, tradutor, roteirista e cronista de mão cheia – ele dizia que era esta a atividade que pagava as contas – clássicos indiscutíveis como Sargento Getúlio, de 1971, Viva o Povo Brasileiro, de 1984, e A Casa dos Budas Ditosos, de 1999, títulos de fôlego que o alçaram, com justiça, rigor e alguma polêmica, ao cânone literário brasileiro.

Seu conjunto intelectual demonstra, num recorte plano de cinco décadas de atuação, um autor que sempre foi regular em sua produção, muito cuidadoso com o próprio trabalho e capaz de trazer o contexto social ao protagonismo de seus enredos, repletos de personagens densos e contraditórios.

Considerado por muitas vezes como difícil e regionalista, Ubaldo conseguiu uma façanha digna de nota e que merece ser melhor avaliada: conciliar o reconhecimento da crítica com o sucesso de público – seus livros, ao todo, já venderam mais de três milhões de exemplares, e Viva o Povo Brasileiro, não podemos desconsiderar isso, tem mais de 700 páginas.

Foi também adaptado para cinema, minisséries televisivas, teatro e traduzido em diversas línguas.

Consagração

Em 2008, o autor foi condecorado, pelo conjunto de sua obra, com o Prêmio Camões, o maior em língua portuguesa, instituído pelos governos português e brasileiro desde 1988. Sua declaração, à época, é quase uma autodefinição de sua veia iconoclasta, de quem não se leva muito a sério, e integra o folclore do mundo das letras. "Para ser sincero, não acho nada demais. Acho que eu ganhei porque eu mereço".

João Ubaldo Ribeiro, descanse em paz, no céu particular de suas palavras libertárias.

À flor da pele

João Ubaldo Ribeiro tinha alma de subversivo. De seu passado com a boêmia às suas tiradas antológicas, em 1999 poderia se dizer que ele estava desinteressado do rótulo de escritor sociológico. Contratado pela Editora Objetiva para integrar a coleção Plenos Pecados, coube a ele retratar a luxúria. E o resultado foi A Casa dos Budas Ditosos, aquele tipo de livro capaz de dar vergonha de ler em público, tal a vertigem sexual da coisa toda.

A Casa... é um mergulho na caixa ressonante de nossos desejos. A obra, de contornos metalinguísticos, é narração, na primeira pessoa, de uma libertina de vida inteiramente dedicada ao sexo, que dita suas experiências para um gravador e supostamente entrega o material a Ribeiro.

Há de tudo por aqui: incesto, sexo com menores, orgias, swing, relatos pormenorizados de determinadas características físicas... É um romance de tal envergadura erótica que chegou a dividir a crítica da época, que o considerou de excessivamente pornográfico e escandaloso a retrato intenso e direto da sexualidade humana.

Entranhas do país

Se em Sargento Getúlio temos o ideal do destino grego de um personagem central, irreversível, em Viva o Povo Brasileiro o eixo é a fortuna histórica de todo um país. É um tipo de bildungsroman, um romance de formação que traça um panorama de quase 400 anos da história do Recôncavo Baiano, com diversos fios narrativos e variações dialetais, de 20 de dezembro de 1647 a 7 de janeiro de 1977.

Vencedor do Prêmio Jabuti de 1984, Viva... relê o catequismo jesuíta, a invasão holandesa, a independência da Bahia, o regime de escravidão, a proclamação da República e o Golpe de 1964, numa tentativa monumental de expurgar os tempos duros de exceção.

A profusão quase aleatória de vozes, ações, narrativas e procedimentos justificam, em última análise, o seu título e tratam da dificuldade extrema que temos em dizer o que é o povo brasileiro e qual é a voz que o representa. A jogada de mestre está em retirar do âmbito do narrador o seu potencial de figura neutra e organizadora, fugindo, assim, da tentação de forjar as bases da identidade do Brasil.

Do caboclo Capiroba ao guarda-livros Amleto Ferreira, "aquele mulato, sarará, magro e um pouco melhor falante do que seria conveniente", e que se torna bancário, Viva o Povo Brasileiro se faz de um humor tropical para descrever as oscilações de seus personagens. É um destes épicos, ao modo de Erico Verissimo, que compõem o imaginário social e contam de nossas dificuldades de autoentendimento.

Brasil primitivo

Sargento Getúlio é a entrada de João Ubaldo Ribeiro no imaginário cultural brasileiro sem pedir licença, dando com os dois pés na porta. Narrado em primeira pessoa por Getúlio Santos Bezerra, um militar nordestino com a missão de transportar um prisioneiro político, a obra é uma navegação acidentada ao coração do Brasil profundo.

Ambientado no Nordeste brasileiro dos anos 1950, com seus coronéis, jagunços e turbulências políticas, Sargento Getúlio, vencedor do Prêmio Jabuti de melhor livro de 1972, é uma síntese do espírito latino-americano, onde impera o totalitarismo, a mão de ferro e a obediência às ordens. Getúlio, este camponês aferroado ao seu dever, nada mais é do que o reflexo de gerações de bárbaros resolutos – o que explica, em certa medida, o fascínio que o personagem exerce em nós.

As coisas começam mesmo a dar errado quando Getúlio recebe uma missão – "O Chefe disse: me traga esse homem vivo, seu Getúlio. Quero o bicho vivão aqui, pulando." – mas o panorama político, durante a travessia, acaba se modificando, levando-o a consequências de notas quase surreais, numa espécie de versão sertaneja da Ilíada.

É um romance de fortes contornos regionalistas, mas permanente como um amplo retrato de nacionalidade, despertando ainda hoje interpretações ambíguas – aqui, um dos finais mais pungentes da literatura brasileira do século 20.

Bibliografia

Confira as principais obras publicadas por João Ubaldo Ribeiro:

- Romances

Setembro Não Tem Sentido (1968)

Sargento Getúlio (1971) Vila Real(1979) Viva o Povo Brasileiro (1984)

O Sorriso do Lagarto (1989)

O Feitiço da Ilha do Pavão(1997)

A Casa dos Budas Ditosos(1999)

Miséria e Grandeza do Amor de Benedita (2000)

O Albatroz Azul (2009) - Contos

Vencecavalo e o Outro Povo (1974)

Livro de Histórias (1981) Contos e Crônicas para Ler na Escola (2010) - Crônicas

Sempre aos Domingos (1988) Um Brasileiro em Berlim (1995) Arte e Ciência de Roubar Galinhas (1999)

O Conselheiro Come(2000) A Gente Se Acostuma a Tudo (2006)

O Rei da Noite (2008) - Ensaio

Política: Quem Manda,Por Que Manda, Como Manda (1981)

- Infantojuvenil

Vida e Paixão de Pandonar, o Cruel (1983)

A Vingança de Charles Tiburone (1990)

A maioria dos livros do escritor está disponível nos acervos das editoras Objetiva e Alfaguara.

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