• Carregando...

O historiador Peter Burke, comentando Montaigne, fala do gênero ensaístico como "uma forma de pensar em voz alta" e, em seguida, define a visão de mundo contida n’Os Ensaios: "todas as nossas pinturas mentais são esboços inacabados, necessitando modificação interminável". Essa forma de se expressar teria sido, sugere ainda Burke, uma estratégia para ludibriar os censores católicos à época da publicação da obra, fazendo parecer que Montaigne "não estava seriamente envolvido com tudo o que escreveu".

As duas passagens estão incluídas em O Historiador Como Colunista, coletânea de artigos do historiador britânico publicados na imprensa brasileira. É sintomático que, fazendo jornalismo, Burke se apresente, ele próprio, como ensaísta – desde fins do século 18, revistas e até jornais diários, especialmente no mundo de língua inglesa, têm publicado ensaios. O gênero é, também, jornalístico: até Montaigne, a certa altura de suas reflexões, "entrevista" um cacique tupinambá brasileiro, levado à Europa como curiosidade antropológica de uma América recém-descoberta.

Mas já no século 19, e mais ainda no século 20, o jornal e a revista encurtam espaços e profundidade, tornam-se veículo ágeis demais para continuar a comportar o ensaio clássico. A adaptação resulta no que se chama, genericamente, de artigo. Mas, como o ensaio "narra", não apenas investiga ou analisa, de seu hibridismo nasce outro gênero, igualmente dividido entre a literatura e o jornalismo: a crônica.

Luís Augusto Fischer, em Inteligência com Dor, defende que Nelson Rodrigues, sublime cronista, teria sido, na verdade, um ensaísta – seus textos têm a estrutura clássica do ensaio, argumenta Fischer. Por exemplo: enquanto cronistas menos geniais atuariam no nível da "descrição", Nelson tratava de "narrar". Fischer não desmerece a crônica, muito ao contrário. Mas vê, a partir de Nelson (e, note-se, no espaço do jornal), bons augúrios para o ensaio: "Avançando uma hipótese, diria que hoje, mais que noutros momentos do passado ocidental, o gênero ganha fôlego, se não como forma mais ou menos fixa (como na crônica), como atitude mental".

O lugar do gênero

Pode-se dizer, pois, que crônica e ensaio – ambos gêneros híbridos –são parentes: a partir de experiências triviais (ou, ao menos, incluindo-as), conseguem descortinar uma abordagem original sobre determinado tema. A diferença é o aprofundamento. Mas a menção à crônica talvez ajude a responder duas questões pertinentes ao florescimento, hoje aparentemente vigoroso, do ensaio no Brasil: será que o fato de termos tantos bons cronistas – com seus textos mais curtos, ligeiros, bem-humorados – pode ser a razão pela qual não se estabeleceu, entre nós, a mesma tradição no ensaio? E ainda: há espaço para o ensaio nos jornais diários – mesmo que "disfarçado" nos artigos de um Contardo Calligaris, Luiz Felipe Pondé ou Roberto DaMatta, para citar alguns nomes de destaque? Ou seu lugar é mesmo em revistas mais especializadas?

A própria existência dessas revistas, que tentam dar fôlego ao gênero ensaístico no país – como serrote (a grafia tem inicial minúscula, propositalmente) e Dicta & Contradicta, além da mais antiga e conhecida piauí, embora se dedique mais amiúde à reportagem –, responde em parte à segunda pergunta. Os editores responsáveis por serrote e D&C, porém, preferem certa cautela e, como bons entusiastas do ensaio, abertura de espírito nessa questão: "É provável que escrevendo em jornal diário um colunista acabe privilegiando os acontecimentos mais imediatos, mas há formas e formas de fazer isso", pondera Paulo Roberto Pires, da serrote. "É possível, enfim, ter uma pegada ensaística no jornal diário e, também, se dizer ensaísta e não entregar o prometido."

Joel Pinheiro da Fonseca, um dos editores da Dicta & Contradicta, envereda pela relação entre crônica e ensaio, levantada na primeira pergunta, para pensar – também com ponderação – o lugar do gênero ensaístico, hoje, no Brasil: "O ensaio costuma despertar interesse duradouro, enquanto a crônica é mais presa a seu contexto particular. Em todo o caso, a diferença entre os gêneros é gradual, e me parece estéril discutir se um autor é ensaísta ou ‘mero’ cronista". É precisamente pelas características de um e outro, porém, que Fonseca toma posição sobre o que chama de "habitats naturais" dos ensaístas: revistas e livros, porque, segundo ele, "o ensaio se pretende a uma vida mais longa".

Síndrome de Estocolmo

Pires, por sua vez, discorda da tese de que Nelson Rodrigues possa ser alçado da categoria de cronista à de ensaísta – e, de quebra, da idéia de que a crônica "descreve", enquanto o ensaio "narra": "Na crônica, mesmo nas menos convencionais, a narrativa tem um protagonismo. O ensaio, é claro, pode ser narrativo também, mas tende menos à anedota do que à exposição de idéias", argumenta. Voltar a esse ponto pode ser importante para responder a uma terceira e última pergunta: quem faz ensaio no Brasil? (Provocados, tanto Pires quanto Pinheiro elegeram basicamente ensaístas estrangeiros como seus prediletos: Pires citou Walter Benjamin, Edmund Wilson, Susan Sontag, Roland Barthes, Michel Leiris e um único brasileiro que se pode dizer ensaísta "de ofício", Davi Arriguci Jr.; Pinheiro mencionou Montaigne, Theodore Dalrymple, Vilém Flusser e um ícone do liberalismo nativo, Roberto Campos.)

São muito poucos, por exemplo, os ficcionistas brasileiros que se dedicam a "ensaiar" como ingleses e americanos – uma exceção de peso é Bernardo Carvalho. "O problema é que não temos esta tradição na literatura brasileira: o ficcionista que pensa", ataca Martim Vasques da Cunha, também editor da Dicta & Contradicta – e para quem Bernardo Carvalho não figura, aliás, entre as exceções nesse caso. "O motivo, para mim, é claro: o ficcionista brasileiro acredita que escrever é um ato de inspiração, não de disciplina."

Mas essa pouca afinidade dos autores com o gênero também não ocorreria porque a universidade brasileira, historicamente, "seqüestrou" o ensaio para si?

"Se a universidade sequestrou o ensaio, rolou uma síndrome de Estocolmo, pois parece que os ensaístas em potencial gostam desse cativeiro", brinca Paulo Roberto Pires. O editor da serrote lamenta que os debates acadêmicos venham à luz "nem sempre no melhor dos estilos, nem sempre demonstrando bom trato da língua". E arremata: "Parece que o exercício livre das idéias virou uma atividade de segunda categoria na vida intelectual." Não se depender de serrote, Dicta & Contradicta e dos bons ensaístas acadêmicos brasileiros – alguns deles mencionados nesta reportagem.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]