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Repórter na Guerra do Vietnã pela revista Realidade, José Hamilton Ribeiro ficou 40 dias no front. No último deles, adiou sua volta ao Brasil para acompanhar o fotógrafo japonês Keisaburo Shimamoto em uma operação do exército americano. Era 20 de março de 1968. Shima – como o jornalista brasileiro o chamava – estava cobrindo aquela guerra há dois anos, mas tinha uma inépcia irritante – perdia, uma atrás da outra, boas oportunidades de fazer imagens da guerra. Como também tinha de voltar a Saigon – hoje Cidade de Ho Chi Minh – com Ribeiro e não havia conseguido "a" fotografia, apostava na tal operação. Quando chegaram ao local previsto, havia um campo minado e, nele, alguns feridos. Médicos e enfermeiros correram para prestar socorro, Shima e Ribeiro os seguiram nessa ordem, com o cuidado de pisar sempre nas mesmas pegadas.

Uma explosão zuniu nos ouvidos de Ribeiro. Ele ficou preocupado com o fotógrafo. Quando a fumaça se dissipou, Shima veio em direção ao brasileiro com um cigarro aceso na boca e uma expressão de perplexidade. Demorou mais um pouco até Ribeiro perceber que ele fora atingido. A descrição de como descobriu que estava sem sua perna esquerda é de tirar o fôlego e bastaria para transformar em clássico O Gosto da Guerra (144 págs., R$ 24,90). Relançado pela Objetiva durante a Bienal Internacional do Livro, em maio, e parte da coleção Jornalismo de Guerra, o livro de 1969 é um marco do jornalismo nacional. A obra estava esgotada há mais de duas décadas e costumava ser disputada a tapas em sebos de toda parte.

"Ele trazia um cigarro aceso e tentou colocá-lo na minha boca. Não aceitei. Sentia na boca um gosto ruim, como se tivesse engolido um punhado de terra, pólvora e sangue – hoje eu sei, era o gosto da guerra", lembra Ribeiro. Impressiona a forma como a guerra age sobre os sentidos de quem a vive. "Medo, frio – muito frio –, desconforto, e aquele constante odor de sangue velho e óleo diesel, que é o cheiro da guerra", descreve Joel Silveira, outro dinossauro do jornalismo brasileiro, hoje com 86 anos. Seu livro, integrante da mesma coleção e relançado simultaneamente à obra de Ribeiro, é outro clássico: O Inverno da Guerra (Objetiva, 176 págs., R$ 27,90).

No inverno de 1944, Silveira, autor de várias obras referenciais – como A Feijoada Que Derrubou o Governo e A Milésima Segunda Noite da Avenida Paulista, lançadas pela Companhia das Letras na série Jornalismo Literário – viajou como repórter para a Itália, enviado pelos Diários Associados, de Assis Chateaubriand, para cobrir a Segunda Guerra Mundial. O resultado dessa experiência foi uma série de textos escritos como um diário de bordo e publicados pela primeira vez em 1945, sob o título Histórias de Pracinhas – fora de catálogo há mais de 30 anos.

Tanto o relançamento de José Hamilton Ribeiro – autor de Gota de Sol e Sr. Jequitibá, entre outros –, quanto o de Joel Silveira, vêm com faixas bônus: textos inéditos escritos pelos autores que, ainda, revisaram os antigos. Ribeiro conta como foi visitar o Vietnã 30 anos depois de seu acidente na segunda parte do livro. "A Volta Doeu Mais" é o nome de um dos textos em que admite ter passado noites em claro e buscado ajuda médica, inclusive com remédio tarja preta, até conseguir lidar com a situação.

Hoje com 67 anos, Ribeiro é repórter e editor do Globo Rural há 23. São dele algumas das melhores reportagens do programa, inclusive aquelas que experimentam pratos incomuns de cozinhas do Brasil e do mundo. Sua volta ao Vietnã serviu também para isso: mostrar alguma iguaria da cozinha local – optou por falar de carne de cobra porque carne de cachorro e miolo de macaco ainda vivo pareceram indigestos demais. Nenhum jornalista venceu tantos prêmios quanto Ribeiro. Só o Esso, o mais importante do país na área, foram sete.

Já Joel Silveira preparou um prefácio à nova edição, que aparece como o capítulo inicial. "Não Foi um Passeio" começa com um desabafo em que o escritor lamenta a atitude daqueles que desconfiam das dificuldades vividas durante a cobertura da Segunda Guerra Mundial, dizendo "Foi uma sopa, não foi?". Silveira diz que costumava se irritar muito com a pergunta, mas hoje não. "Limito-me a pensar comigo mesmo que o diabo é testemunha de que não foi um passeio."

Com a sorte de não ter se ferido durante sua estadia no front, Silveira costuma dizer que foi à Itália com 26 anos e, pouco mais de oito meses depois, voltou com 40. "Ao contrário do poeta, não foi exatamente por delicadeza que naqueles quase nove meses perdi parte de minha mocidade, ou o que restava dela. A guerra, repito, é nojenta. E o que ela nos tira (quando não nos tira a vida) nunca mais nos devolve."

Para os jornalistas brasileiros, a guerra tem gosto, cheiro e o diabo como testemunha. Por meio de seus textos acachapantes, é quase possível experimentá-la tal como eles o fizeram.

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