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Nestes últimos meses, aqueles que tenham lá alguma curiosidade pelo universo literário correm o risco de testemunhar algo inusitado: a dupla publicação de uma mesma obra. O responsável pela façanha, em um cenário em que os escritores são obrigados a buscar quem os edite como quem persegue o tesouro no fim do arco-íris, responde pelo nome de Cyro dos Anjos (1906 – 1994), autor de O Amanuense Belmiro, o livro em questão.

De fato, esse duplo lançamento (pela Globo, com posfácio de Alcir Pécora, e pela Editora UFMG, em fac-símile) é um bom modo de se comemorar o centenário de nascimento desse romancista que, já em sua estréia, foi comparado a ninguém menos do que Machado de Assis. Sim, no longínquo ano de 1937 houve quem visse em O Amanuense a consolidação da estirpe literária criada pelo autor de Dom Casmurro. Não é difícil imaginar que para um estreante tal honra tenha sido também um fardo, pela grande dose de responsabilidade que a comparação acarreta. Qualquer que seja o motivo, o fato é que a produção de Cyro, apesar dessa tão boa acolhida a seu primeiro romance, restringiu-se a um pequeno número de títulos: dois outros romances, dois livros de memórias, um de poemas e outro de crítica literária. Infelizmente, nenhum deles chegou ao grau de notoriedade do livro de estréia, para o qual todas as atenções continuam voltadas. Para se ter uma idéia do alcance de O Amanuense, basta referir, por um lado, sua presença em antologias escolares dos anos 40 e 50 e, por outro, alguns nomes de críticos que dele se ocuparam, entre os quais aparecem Antonio Candido, Roberto Schwarz e Silviano Santiago.

Agora vem a parte mais difícil, que é dizer por que, afinal de contas, esta obra conquistou tão grande importância. Podemos começar com a comparação com Machado. O que existe dele em O Amanuense? De imediato o que se nota é a presença da ironia. O narrador, o Belmiro do título, tem o propósito de escrever umas memórias em que fique registrado seu tempo de infância no interior de Minas Gerais, um tempo em tudo diverso daquele presente no qual o amanuense diz não se encaixar.

A primeira ironia dessa trama deve-se à transformação do livro de memórias em diário, pois o interesse pelo passado, vivido na remota Vila Caraíbas, parece insuficiente para suplantar a urgência que emana da experiência do presente. Com graça Belmiro fala de sua necessidade de escrever, dizendo-se grávido – "o melhor seria vivermos sem livros, mas o homem não é dono do seu ventre, e esta noite insone de Natal, (as sinistras noites de Natal, responsáveis por tanta literatura reles!) traz-me um desejo irreprimível de reencetar a tarefa cem vezes iniciada e outras tantas abandonada". Com naturalidade encara a mudança do foco de sua atenção, que se desloca vigorosamente para seu cotidiano belo-horizontino. Como o Bentinho de Dom Casmurro ele se diz franco, disposto a se abrir com seus eventuais leitores... Aí começam as complicações dessa narrativa, que à primeira vista parece ser apenas o retrato acanhado de uma existência sem importância, de pequeno funcionário público.

Que o leitor não se iluda. A simpatia do narrador pode ser a arma usada por ele para esconder uma intimidade que não quer ver desvelada nem para si mesmo. Assim, é preciso atenção aos passos do amanuense para reconhecer suas manobras, perceber as implicações de passagens como esta: "se, acaso, publicar um dia este caderno de confidências íntimas, perdoem-me os leitores as anotações de caráter muito pessoal que forem encontrando e que certamente não lhes interessarão. Quem escreve um Diário (afinal, estou escrevendo um...) não se pode furtar à sua própria contemplação. É um narcisismo a que ninguém escapa". Aqui se tem um bom exemplo da ambigüidade do narrador, que a um só tempo pede desculpas pelo excesso de intimidade revelada e reconhece-se narcisista. Como seria possível incomodar-se com o que há de informação pessoal em um diário? A resposta é que o incômodo que Belmiro atribui a seu leitor é, na verdade, uma experiência sua, o que cria uma situação em que o impulso à confissão, que o narrador ironicamente chama de narcisismo, compete com o pudor, com o medo de enfrentar a realidade, que ganha corpo através da palavra escrita. A franqueza declarada de Belmiro revela-se aos poucos uma estratégia retórica, que serve para encobrir muitas coisas, entre as quais sua completa inadaptação.

Quando se atenta para o ambiente em que a ação do romance transcorre (um Brasil e um mundo que se debatem entre as forças político-ideológicas de esquerda e direita) e para o perfil do protagonista, um homem condenado a viver um cotidiano aquém de toda sua complexa riqueza intelectual, é possível ampliar o universo de referências de Cyro dos Anjos para além daquela matriz machadiana. O amanuense é um homem de seu tempo, que sofre com a memória de uma guerra e a ameaça de outra, com a imagem da destruição generalizada que pouco depois do lançamento do livro se tornaria realidade.

O tempo de Belmiro é "tempo de partido, tempo de homens partidos", como bem disse Drummond, companheiro de geração de Cyro. Não é à toa, então, que o narrador se debata entre contar o presente ou o passado, acompanhar os amigos de esquerda ou os de direita, falar de si ou calar-se. Pensando nesse enraizamento de Belmiro às questões de seu tempo, aquela ambigüidade que faz dele um quase duplo de Bentinho ganha novos contornos, a melancolia e a angústia que sua ironia não consegue disfarçar vão irmaná-lo ao Joseph K. de O Processo e ao Bernardo Soares de O Livro do Desassossego. Com suas reticências e indefinições, da descrição do mundo partido que é o de Belmiro pode nascer a escrita de um mundo íntegro. Nesse sentido, aquele "que faremos?" que ecoa no final do romance deve ser lido não só como a assunção do impasse mas também como um convite à ação transformadora. É ler para crer.

Patrícia Cardoso* - especial para o Caderno G

* Professora de Literatura Portuguesa na Universidade Federal do Paraná e doutora em Teoria e História Literária pela Universidade de Campinas. Sua dissertação de mestrado, também defendida na Unicamp, tem O Amanuense Belmiro como tema.

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