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o retorno do vampiro

Um soco no estômago

O Beijo na Nuca reapresenta Dalton Trevisan e o seu mundo sombrio e de belezas inauditas

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(Foto: Reprodução)

Dalton é melancolia cotidiana e escuridão de várias notas. Ele é o narrador das pequenas catástrofes e quem denomina cada um dos becos afetivos da capital – não se dorme muito bem depois de andar por suas ruas. O vinho barato ressaca pior. Onde o amor não tem perspectiva. O vampiro da cidade das bipolaridades climáticas – um dia acordaremos de nosso eterno sono amoroso – é, sobretudo, contemporâneo. Quem alega que sua etnografia reflete uma urbe nostálgica, dos antigos lambaris de rabo dourado e das lembranças de um Rio Belém de outras paragens, talvez não se disponha a andar através de seus olhos. Eles entregam um fotograma de amores ruins, ipês floridos e passarinhos diante do concreto: Curitiba, mon amour.

Coletânea de 48 contos de tiro breve, certeiro, mas não indolor, O Beijo na Nuca é o quadragésimo sexto livro de Dalton Trevisan e traz um repertório de caminhos conhecidos, um apanhado de sustos e negrumes: "Noite de lua me levanto, vou suspirar na janela: todos os pernilongos cantam o teu nome.", "Você ficou nu e a tua noite escura me cegou de tanta estrela.", "É menos que um ovo de gaivota, na geografia da aventura, a ilha em que habito.", "Um pescador só tem olhos para o peixe invisível".

O Beijo... explora as reentrâncias da escuridão, "Ó noite, vala comum de fogos-fátuos, corações perdidos, estrelas mortas. Só resta um destino.", para dela retirar a força lírica, bruta e angustiante de sua prosa, que ecoa em diversas tonalidades.

Prêmio

Este Dalton Trevisan das esquinas trágicas, o vencedor do Prêmio Camões (2012), do Machado de Assis (Academia Brasileira de Letras, 2012) pelo conjunto de sua obra e do Prêmio Portugal Telecom de 2003, permanece afiado, olhando o fluxo do existir com uma certa ironia arrebatadora, como se nos dissesse: "Esse mundo que vocês se aceleram e mais se aceleram, é triste e sem escapatória".

De seus clássicos da literatura brasileira, como Novelas nada exemplares (1959), Morte na praça (1964), Cemitério de elefantes (1964), O vampiro de Curitiba (1965) e Ah, é? (1994), até o percurso noturno-melódico de O Beijo na Nuca, Dalton continua sendo o cronista-contista preciso e firme de sempre, assim como os amores e tristezas de um domingo na capital, inabalável.

Não entrevista

Perguntas sem respostas para o vampiro

O repórter Daniel Zanella realiza uma entrevista exclusiva com Dalton Trevisan. Ele fala sobre seu novo livro. Ele, o repórter.

Dalton, Curitiba surge em suas linhas como uma cidade de linguagem escura, como se aqui fosse até difícil chorar. Como faremos para nos libertar de nossa própria escuridão se até nosso principal escritor fulgura as trevas?

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O Beijo na Nuca parece discutir as formas modernas do mal, embora não nos entregue uma cartilha de entendimento. Você acredita que escrever na extremidade dos horrores cotidianos não revela nossa ignorância sobre tudo?

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Os labirintos de seus contos dizem mais do que a superfície de suas ruas, esquinas e becos. Pensas que até para ser vampiro em Curitiba é preciso criar o próprio labirinto e recusar quase completamente a existência?

...

A condição erótica ainda é o condutor invisível de O Beijo na Nuca. Entretanto, ela aparece numa intensidade menor, como a dizer que o sexo e o amor já não precisam ser denominados, intrínsecos ao nosso fardo. Ou será que estamos diante de um autor mais contemplativo e cronista?

...

Como não podia deixar de se perguntar sempre que estamos diante de um novo livro seu, irá ao lançamento? Negará até o fim os grupos culturais e a vida dentro da maçonaria literária? Nem mesmo no dia de morrer e, como você diz, ficar cego de tanta estrela?

Confira um trecho do conto "A Ilha", presente no livro O Beijo na Nuca

Ilha de castos encantos, a sua topografia é particular.

Nada ocorre de extraordinário, a não ser a citada sereia que,

pulando numa perna só, aninha-se nos meus braços.

Os passarões disputam as fêmeas entre as nuvens e semeiam

no meu jardim nenúfares de luxo. No exílio de muitas águas

chorei os amores perdidos. De voltar esperança já não tenho.

Aqui, entre longes e prodígio, engordo ao sol da minha solidão.

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