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O que "disseram"

Ao término da leitura de O Beijo na Nuca, um percurso singular e ermo pelas ruas de Curitiba, alguns autores que estudaram a escuridão das cidades, como antigos flâneurs à Baudelaire e Rimbaud, foram lembrados. Através de uma série de colagens de textos desses cronistas, chegamos a uma espécie de crítica sobre o novo livro do vampiro:

Rubem Braga

Os passarinhos, se morrem os passarinhos

O novo livro de Dalton Trevisan é um quarto frio construído por um demônio para nele prender a minha insuportável solidão. Seus contos de O Beijo na Nuca mostram esse herói silencioso que lança um protesto superior, um autor que lança sua esperança para além da barreira escura da morte, no reino luminoso que uma crença lhe promete, ou enfrenta.

Dalton é aquela hora que você disse eu não estava lá, o escuro garfo do bife magro. Sempre estremeço de emoção. Os passarinhos de Dalton são macios, melodiosos, variados, bonitos... Mas leio-o, vejo o passarinho de casa e abano a cabeça com melancolia: acho que vou dar esse passarinho à minha irmã, de presente...

Em certos contos aparece a figura clássica da mulher esperando o homem. O tema da mulher esperando o homem há muito, muito tempo me fascina; sei que é velho, já serviu para sonetos, contos, páginas de romance, talvez quadro de pintura, talvez música... Penso que devia haver um santo especial para proteger a mulher esperando o homem, devia haver uma oração forte para ela rezar. Devaneios.

Dalton é como se quadriculasse lentamente a minha insônia.

João do Rio

Os mares do coração de Dalton

Curitiba não tem mar e Dalton é, mesmo assim, seu marujo, a dizer "Mar sagrado, eu te venho salvar, a tua água te venho pedir para fortuna por Deus para minha casa levar". O tema da violência está lá, vive em sua jaula o Crime multiforme, com seus desordeiros terríveis, retorcendo os bigodes, cheio de langores, sátiros moços e velhos violadores.

Como um Goya, seus grandes painéis gotejam sangue, treva, pus. Onde perpassam, deixam um aspecto de bichos lendários. Dalton, o poeta da calçada, desce ao porão. Sua atmosfera de caldeira sufoca. Nesta embarcação, que podemos chamar de Curitiba, os mesmos movimentos, o mesmo gasto de forças, regulados pela trepidação do guincho, os esforços dos que se esfalfam no porão e dos que se queimam no sol.

Músico ambulante, de súbita voragem, sua canção preside à nossa vida, auxilia até na gestação, reúne à voz os movimentos da alma e do corpo. Sem perder a calma, esse meu esquisito guia mete a mão no bolso da calça, tira um pedaço de massa envolvido em folhas de dormideira, desdobra-o. Então, seu belo delírio se propaga.

Machado de Assis

Ó, Dalton, tão perfeita a sua sensação de morte

Bons dias!! Como é possível que hoje, amanhã ou depois, tornem a falar em crise ministerial, venho sugerir aos meus amigos um pequeno obséquio: o novo livro do Dalton. Diante de O Beijo na Nuca, eu ia subindo na leitura, ouvia já os coros de anjos, quando a própria figura do Senhor me apareceu em pleno infinito. Tinha uma ânfora nas mãos, onde espremera alguma dúzia de nuvens grossas, e inclinava-se sobre esta cidade, Curitiba, sem esperar procissões que lhe pedissem chuva.

Lançamento

O Beijo na Nuca

Dalton Trevisan. Record. 144 págs, R$ 32.

Dalton é melancolia cotidiana e escuridão de várias notas. Ele é o narrador das pequenas catástrofes e quem denomina cada um dos becos afetivos da capital – não se dorme muito bem depois de andar por suas ruas. O vinho barato ressaca pior. Onde o amor não tem perspectiva. O vampiro da cidade das bipolaridades climáticas – um dia acordaremos de nosso eterno sono amoroso – é, sobretudo, contemporâneo. Quem alega que sua etnografia reflete uma urbe nostálgica, dos antigos lambaris de rabo dourado e das lembranças de um Rio Belém de outras paragens, talvez não se disponha a andar através de seus olhos. Eles entregam um fotograma de amores ruins, ipês floridos e passarinhos diante do concreto: Curitiba, mon amour.

Coletânea de 48 contos de tiro breve, certeiro, mas não indolor, O Beijo na Nuca é o quadragésimo sexto livro de Dalton Trevisan e traz um repertório de caminhos conhecidos, um apanhado de sustos e negrumes: "Noite de lua me levanto, vou suspirar na janela: todos os pernilongos cantam o teu nome.", "Você ficou nu e a tua noite escura me cegou de tanta estrela.", "É menos que um ovo de gaivota, na geografia da aventura, a ilha em que habito.", "Um pescador só tem olhos para o peixe invisível".

O Beijo... explora as reentrâncias da escuridão, "Ó noite, vala comum de fogos-fátuos, corações perdidos, estrelas mortas. Só resta um destino.", para dela retirar a força lírica, bruta e angustiante de sua prosa, que ecoa em diversas tonalidades.

Prêmio

Este Dalton Trevisan das esquinas trágicas, o vencedor do Prêmio Camões (2012), do Machado de Assis (Academia Brasileira de Letras, 2012) pelo conjunto de sua obra e do Prêmio Portugal Telecom de 2003, permanece afiado, olhando o fluxo do existir com uma certa ironia arrebatadora, como se nos dissesse: "Esse mundo que vocês se aceleram e mais se aceleram, é triste e sem escapatória".

De seus clássicos da literatura brasileira, como Novelas nada exemplares (1959), Morte na praça (1964), Cemitério de elefantes (1964), O vampiro de Curitiba (1965) e Ah, é? (1994), até o percurso noturno-melódico de O Beijo na Nuca, Dalton continua sendo o cronista-contista preciso e firme de sempre, assim como os amores e tristezas de um domingo na capital, inabalável.

Não entrevista

Perguntas sem respostas para o vampiro

O repórter Daniel Zanella realiza uma entrevista exclusiva com Dalton Trevisan. Ele fala sobre seu novo livro. Ele, o repórter.

Dalton, Curitiba surge em suas linhas como uma cidade de linguagem escura, como se aqui fosse até difícil chorar. Como faremos para nos libertar de nossa própria escuridão se até nosso principal escritor fulgura as trevas?

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O Beijo na Nuca parece discutir as formas modernas do mal, embora não nos entregue uma cartilha de entendimento. Você acredita que escrever na extremidade dos horrores cotidianos não revela nossa ignorância sobre tudo?

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Os labirintos de seus contos dizem mais do que a superfície de suas ruas, esquinas e becos. Pensas que até para ser vampiro em Curitiba é preciso criar o próprio labirinto e recusar quase completamente a existência?

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A condição erótica ainda é o condutor invisível de O Beijo na Nuca. Entretanto, ela aparece numa intensidade menor, como a dizer que o sexo e o amor já não precisam ser denominados, intrínsecos ao nosso fardo. Ou será que estamos diante de um autor mais contemplativo e cronista?

...

Como não podia deixar de se perguntar sempre que estamos diante de um novo livro seu, irá ao lançamento? Negará até o fim os grupos culturais e a vida dentro da maçonaria literária? Nem mesmo no dia de morrer e, como você diz, ficar cego de tanta estrela?

Confira um trecho do conto "A Ilha", presente no livro O Beijo na Nuca

Ilha de castos encantos, a sua topografia é particular.

Nada ocorre de extraordinário, a não ser a citada sereia que,

pulando numa perna só, aninha-se nos meus braços.

Os passarões disputam as fêmeas entre as nuvens e semeiam

no meu jardim nenúfares de luxo. No exílio de muitas águas

chorei os amores perdidos. De voltar esperança já não tenho.

Aqui, entre longes e prodígio, engordo ao sol da minha solidão.

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