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Poucas vezes ocorre um lançamento editorial de tal porte como este, concebido tão na surdina. A razão para a relativa discrição talvez resida na circunstância de a obra vir inserida numa série de livros de contos, de um único autor ou de vários, oferecida sem maiores luxos (como orelhas) e a preço mais baixo.

Independentemente do mérito da série, que já reuniu histórias de Tennessee Williams e de Primo Levi, o leitor não deve se enganar: este volume (Companhia das Letras, R$ 42; 448 págs.) traz não somente os contos completos do uruguaio Juan Carlos Onetti (1909-94) como também, por causa disso, apresenta algumas das melhores narrativas curtas de todos os tempos.

Embora não tão famoso, Onetti é um dos grandes escritores latino-americanos do século 20, ombreando com Jorge Luis Borges e Julio Cortázar, e muito acima, por exemplo, de García Márquez ou de Vargas Llosa. Seus melhores contos, produzidos entre a década de 1940 e meados de 1960, merecem figurar em qualquer antologia dos mais extraordinários do gênero. Isso sem mencionar os romances, escritos na mesma época, como Junta-Cadáveres ou A Vida Breve (ambos lançados pela ed. Planeta).

Mas "extraordinário" não é um adjetivo apropriado. As histórias de Onetti distinguem-se justamente por sua falta de pretensão, pelo investimento no miúdo, no sentimento que margeia a apatia, na quase paralisia angustiante que acompanha os pesadelos, no mistério deixado pelo não dito, pelo inefável. Sem alarde, sem contar nada fora do comum, elas aos poucos vão fisgando o leitor até tomar-lhe o fôlego.

Dom da palavra

É certo que Juan Carlos Onetti tem o dom da palavra. Pode-se pegar quase qualquer uma de suas frases, e elas soam definitivas, quase transcendentes. "Ninguém amou uma mulher com a força com que amo sua ruindade, sua maneira definitiva de estar afundado na vida suja dos homens", diz o narrador de "Bem-Vindo, Bob", conto em que a força do ódio que o personagem sente pelo antagonista é tão forte que beira o homoerotismo. "Olhei a forma estendida, imaginando quem ensinara aos mortos a atitude da morte", declara o herói de "A Face da Desgraça", como quem não quer nada.

Há, nas narrativas de Onetti, um sentido de perda, de coisa impossível, decorrente do embate entre a realidade, sempre degradada, e algum projeto ou sonho, sempre inalcançável. Essa quimera gera nos personagens um desejo frustrado de evasão, que pode configurar-se na vontade de levar uma existência mais romanesca (como em "O Possível Baldi"), de isolar-se num local remoto ou mítico ("Excursão" e "Convalescença"), de ter a vida que poderia ter sido e que não foi ("Bem-Vindo, Bob"), de encontrar o amor ("A Face da Desgraça") ou de viver um sonho, que se revela vizinho da morte; esta, a única instância concreta em que a paz e a compreensão são enfim alcançáveis ("Um Sonho Realizado").

Diante do impasse, os personagens tendem à apatia, à tibieza, a uma entrega à corrupção. Mas essa atitude não confere às histórias, em que muitas vezes os sujeitos e os locais não são nomeados, um idêntico desencanto. Por mais negras ou sórdidas que se mostrem, elas geram um estranho interesse que está ligado, de um lado, à forma singularmente perfeita com que se engendram.

De outro, o interesse se dá porque a ficção de Onetti diz respeito a sentimentos e sensações comuns a todos nós. Ela fala da perda das ilusões suscitada pelo escoamento dos dias, descreve o fardo da consciência inevitavelmente entrelaçada à finitude da carne. O resultado é que ela fornece um dos mais impressionantes retratos da alma humana, atormentada pela própria condição de ter vindo ao mundo.

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