Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo
Fenômeno

Um tapinha não dói?

Serviço:Cinquenta Tons de Cinza. E. L. James. Tradução de Adalgisa Campos da Silva. Intrínseca, 480 págs., R$ 39,90 (versão impressa) e R$ 24,90 (e-book) | Reprodução
Serviço:Cinquenta Tons de Cinza. E. L. James. Tradução de Adalgisa Campos da Silva. Intrínseca, 480 págs., R$ 39,90 (versão impressa) e R$ 24,90 (e-book) (Foto: Reprodução)

O sucesso de Cinquenta Tons de Cinza já vai além do mercado editorial. Na próxima terça-feira, chega às lojas norte-americanas a trilha sonora Fifty Shades of Grey – The Classical Album, seleção de composições eruditas que inspiraram E. L. James enquanto ela criava sua trilogia erótica. No repértório, obras de Bach, Chopin, Rachmaninoff, Debussy e do brasileiro Heitor Villa-Lobos ("Bachianas Brasileiras N.º 5 – Cantilena").

Também é grande o burburinho em torno da adaptação do primeiro livro da série para o cinema. Com produção da dupla Mike De Luca e Dana Brunetti (os mesmos de A Rede Social), o elenco ainda está em fase de definição e os nomes das atrizes Emma Watson (Harry Potter), Kristen Stewart (Crepúsculo) e Scarlett Johansson (Os Vingadores) estão entre os cotados para o papel da protagonista Anastasia Steele. Antes que a história chegue às telonas, leia críticas do best seller a partir dos pontos de vista masculino e feminino.

*****Ela disse******Uma cópia adulta de Crepúsculo

Luciane Horcel, editora on-line do Caderno G

O primeiro alerta aos interessados em ler Cinquenta Tons de Cinza é estar ciente de que não se trata de uma obra literária de qualidade. O texto fraco, apinhado de clichês, a leitura facilitada e a protagonista "teen" demais para seus 21 anos, estão entre as grandes ressalvas a serem feitas à obra de Erika Leonard James.

Ainda assim, o best seller tem boas razões para ser lido. Não à toa, foram 31 milhões de livros vendidos em poucos meses. Logo nas primeiras páginas, a história viciante e envolvente fisga até os leitores mais desatentos. Mesmos nas pausas de leitura, é difícil não pensar na inexperiente Anastasia Steele se envolvendo com o poderoso, atraente e fascinante Christian Grey, que lhe propõe um relacionamento sadomasoquista.

A semelhança com a série Crepúsculo, de Stephenie Meyer, é bastante evidente. A história da moça jovem, quase inocente, estabanada (até a expressão "com dois pés esquerdos" aparece em ambos os livros) e que se sente bastante inferior ao jovem sedutor que acabou de conhecer, se repete. Semelhança, aliás, facilmente explicada, já que a autora britânica começou a matutar a criação da personagem em sites de fanfics de Crepúsculo.

Também como nas obras vampirescas, o livro de Erika traz um começo de história misterioso. A mocinha já se mostra completa e absolutamente apaixonada pelo rapaz, que, por mais que se mostre igualmente interessado, deixa claro ter um segredo que pode jogar todo o relacionamento pelo ralo.

No caso de Edward, era o fato de ele ser um vampiro. Algo, aparentemente, muito mais complicado que o envolvimento com um adepto do sadomasoquismo, como acontece com Anastasia. A diferença é que encontrar um homem viciado em sexo e brinquedos eróticos é absolutamente possível, enquanto que "sugadores de sangue" ficam no campo da ficção.

E é exatamente essa brincadeira com o imaginário um dos principais trunfos da obra. Aliás, ela afeta mais as mulheres do que a rapaziada. Uma das razões pode ser o fato de que Christian Grey é um personagem muito mais interessante e bem construído que Anastasia. A impressão é de que Erika "pesou na mão" na hora de construir uma protagonista jovem e acabou fazendo uma adolescente meio abobalhada e quase irreal. Não é todo dia que a gente cruza com uma moça virgem aos 21 anos, com pouca intimidade com aparelhos tecnológicos e que fica travando uma conversa infantil com sua "deusa interior".

Talvez por conta de uma moçoila inventada demais, os melhores trechos do livro estão nas trocas de e-mail do casal e, claro, nas descritivas cenas de sexo. Nesses momentos, o vocabulário é escancarado, mas perfeitamente apropriado para o que está sendo relatado. O que poderia cansar são os muitos detalhes, mas eles se fazem necessários na construção mental das cenas picantes.

De qualquer forma, se para muitos críticos o livro não vale nem como passatempo descompromissado, ele pelo menos é uma boa vingança para as mulheres maduras que se envergonhavam de dizer que tinham lido e gostado dos livros da série Crepúsculo. A versão mais quente e adulta da série vampiresca é o suficiente para deixar até os mais liberais corados. GGG

*****Ele disse*****Um romance veladamente machista

Yuri Al’Hanati, repórter do Caderno G

Se, de fato, Cinquenta Tons de Cinza é um livro lido exclusivamente por suas cenas de sexo, supostamente tórridas para as mulheres desabituadas com outras formas de erotismo multimídia, talvez não haja sentido em comentar aqui a estrutura do romance. É o que dizem, afinal, dos que se propõem a criticar o roteiro de um filme pornô — talvez o único gênero de entretenimento funcional existente. Mas, se, pelo contrário, há algo mais que desperte o interesse dos leitores por essa história sadomasoquista que se pretende explorar os limites do desejo feminino, então temos um problema: a derrota feminista no campo da sedução.

Enquanto uma parcela significativa das mulheres luta para se livrar das correntes de um mundo impetuosamente masculinizado, a escritora E. L. James dá um tapa com luva de pelica ao mostrar que a mulher, com a dose certa de persuasão, atração física e dinheiro, não só vai desejar permanecer agrilhoada – e isto, no livro, não é apenas uma metáfora – como ela própria se afirma com todas as letras o sexo frágil e alienado de uma relação.

Pode ser um problema na construção dos personagens, mas repare em como a protagonista Anastasia Steele é rasa, desprovida de metafísica, enquanto seu par, o ricaço Christian Grey, é o único com uma certa profundidade, algum drama em sua vida, alguma coisa de interessante que seja. Anastasia é oca, e é completamente fagocitada pela vida distorcida do magnata. Enquanto ele, por sua vez, só faz concessões à protagonista diante de seus melindres escandalosos.

Christian Grey racionaliza toda a sua vida, e dita ordens na cama como se estivesse lendo um manual. Nada muito glorioso, mas, em contrapartida, Anastasia é tão emocional, inocente e abobalhada que dificilmente cogitamos que ela possa ter um cérebro. Seu intelecto pode ser resumido a um irritante embate explícito entre id e superego, que ela chama de "deusa interior". Um diálogo com o que ela define como "inconsciente", mas que, na verdade, é uma denominação equivocada para digressões com as ideias da própria narradora, e um deslumbramento constante repleto de interjeições como "nossa" e "ah". Nada além disso.

Mesmo assim, Grey só se torna um personagem interessante graças à insistência da narradora, que o menciona, sem exceção nem exagero, em todas as páginas do romance – já na primeira, há duas insinuações de que Christian é misterioso. De fato, o que há de "misterioso" sobre o personagem é sua predileção pela cultura BDSM (bondage, disciplina, dominação, submissão, sadismo e masoquismo), portanto, o segredo cai por terra logo nas primeiras cem páginas, e Anastasia só se mantém atraída por ele porque, enquanto virgem de 21 anos, é curiosa por todo o campo sexual, afinal.

Cinquenta Tons de Cinza ainda adiciona aqui e ali elementos por entre os quais é possível entrever um pensamento retrógrado e machista em relação ao sexo. Por exemplo, sua amiga Kate, diante da informação de que Anastasia perdeu sua virgindade com Christian Grey, menciona que ela fez bem em se guardar para uma primeira vez especial. Ou quando Christian, na condição de dominador, convence a protagonista a se tornar submissa com o argumento de que, nessa condição, ela não seria obrigada a pensar nem a tomar decisões, já que tudo ficaria a cargo dele. É isso o que as mulheres querem? G

Classificações: GGGGG Excelente. GGGG Muito bom. GGG Bom. GG Regular. G Fraco. 1/2 Intermediário. N/A Não avaliado.

Principais Manchetes

Receba nossas notícias NO CELULAR

WhatsappTelegram

WHATSAPP: As regras de privacidade dos grupos são definidas pelo WhatsApp. Ao entrar, seu número pode ser visto por outros integrantes do grupo.