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 | Ilustração: Robson Vilalba
| Foto: Ilustração: Robson Vilalba

Um terreno árido para o debate

A total liberdade de ideias e igualdade de voz entre os usuários inspirou as melhores expectativas em relação à internet: o ciberespaço seria uma estrutura que permite o ressurgimento de uma esfera pública, com múltiplos espaços de discussão. Mas o clima de agressão e a aparente pouca abertura ao diálogo percebida em espaços como o Facebook não colocaria em xeque esta visão?

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No início do ano, o cantor Tom Zé aceitou narrar um comercial de tevê para a Coca-Cola e acabou perdendo o sono ao ficar cara a cara com a reação de parte de seu público. Decepcionados com uma suposta capitulação do artista diante do capitalismo, alguns de seus seguidores manifestaram sua discordância de forma violenta na internet – principalmente via Facebook.

Nas mãos do inventivo mú­­sico baiano, a truculência se tornou material para uma segunda edição de Imprensa Cantada (disco lançado em 2003 que traz canções ligadas a temas tratados na mídia). A faixa de abertura aproveitou alguns dos insultos lidos pelo cantor no Facebook: "Tom Zé mané/ Baixou o tom/ Baba baby/ Bebe e baba/ Velho babão".

Em entrevista por telefone para a Gazeta do Povo, uma semana após o lançamento do EP, em abril, Tom Zé disse que se tratou de um diálogo nos moldes do que vem fazendo durante toda a sua carreira com o público. "Não há progresso sem discórdia", disse. "Agora o público com quem tento conversar tem uma fisionomia e está mais perto de mim." Mas ficou a pilhéria com o julgamento pelo qual passou, cunhada pelo parceiro Emicida e usada para batizar a primeira faixa do EP: "Tribunal do Feicebuqui".

O episódio vivido pelo cantor dá uma medida de um fenômeno que vem se manifestando com cada vez mais força na internet – não apenas envolvendo pessoas públicas, mas também anônimos, por vezes, transformados em réus. As opiniões se inflamam demais para suportarem diálogo; o comportamento agressivo cria um clima de violência perturbador.

"É mais ou menos a mesma agressividade que aparece no trânsito. Lá, o sujeito também está escondido atrás do carro, e se dá ao luxo de dirigir agressivamente, não dar passagem, fechar os outros. Justamente porque não reconhece o outro como seu interlocutor", compara Paulo Vieira Neto, professor de Filosofia Contemporânea na UFPR. "Raramente alguém vai descer do carro e resolver no braço. Dentro deste disfarce, ele pode se dar uma liberdade que não teria em uma interação concreta."

A lógica é simples, e suas consequências se manifestam desde o início desta modalidade de comunicação, nos chats da década de 1990. O computador serve como proteção – quase total para quem se vale do anonimato (ainda que seja possível rastrear os usuários), mas suficientemente motivadora no caso dos que se identificam na rede.

"Isso dá forças para a pessoa acreditar que pode ficar impune. Ela fala o que pensa e publica no mesmo segundo. E, mesmo que se arrependa e apague, não é possível apagar nada completamente", explica a psicóloga Ana Luiza Mano, integrante do Núcleo de Pesquisa da Psicologia em Informática, da PUC-SP.

Os grupos a que os usuários tendem a se agregar oferecem proteção parecida. Daí o surgimento de sessões de linchamento, que podem vitimar desde uma estrela de tevê até uma anônima cujo vídeo em que supostamente faz sexo na praia cai na internet.

"Estou criticando porque pertenço ao grupo. Faço ofensas a alguém, mas o retorno não é a mim, e sim ao grupo que pertenço", explica o professor de psicologia social da UFPR Márcio Cesar Ferracioli.

Sem filtros

Para o professor Vieira Neto, a ausência de certos filtros sociais na internet dá aos usuários interlocutores que jamais teriam no mundo físico.

"Nossa sociedade é muito estratificada e detalhista. O sujeito é medido pela roupa, pela aparência, pelo jeito de falar. Todo esse mecanismo repressor é suspenso na rede, e ele vai tirar vantagem disso", diz o professor, que vê no mecanismo um bom termômetro para identificar demandas reprimidas. Um mecanismo que, por outro lado, também favorece a agressividade. "Quando um certo freio social desaparece, o ressentimento se manifesta com mais violência. É quase como se estivesse xingando a pessoa pelas costas."

Conexões inesperadas

A conexão generalizada em sites como o Facebook também gera um efeito que seus usuários não costumam prever quando publicam suas opiniões na internet. Conforme explica a jornalista Raquel Recuero, professora e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Letras e do Curso de Comunicação Social da Universidade Católica de Pelotas, boa parte das agressões que acontecem nestes sites são indiretas e geram conflitos inesperados. "Há as violências simbólicas, como a dos memes, que ridicularizam alguma coisa. Ela não é direta, mas cria um sistema hostil", explica. "Como as redes on-line são muito conectadas, temos muito mais contato com quem pensa diferente de nós. Como as pessoas não direcionam seus discursos e falam o que pensam, para todos e para ninguém, alguém acaba sendo atingido e se ofende."

Assim, a rede, "hiperconectada", seria um espaço muito complexo para se criar contexto para brincadeiras. O usuário publica uma piada direcionada a seus amigos, mas não leva em conta o colega de trabalho, que também está lendo. "As pessoas não se dão conta do que significa ter 300, 500 conexões com as quais não tem intimidade. É difícil negociar esse contexto", diz Raquel. A recomendação é simples: os usuários de sites de rede social devem ter a noção de que estão usando ferramentas de maneira pública.

Efeitos

Independentemente da urgência pelo reconhecimento da ferramenta para uma convivência mais harmoniosa na rede, os conflitos apontam para um problema ético, na opinião de Ferracioli. O psicólogo diz que o fenômeno aponta para uma "irresponsabilidade social frente ao outro" que pode ser nociva para as relações sociais – não apenas por gerar um sofrimento óbvio para quem se sente agredido. "Este poder de dizer o que quiser pode gerar um individualismo concorrencial, em que cada vez mais as pessoas vão querer se sobrepor umas às outras. O perigo é que gere indiferença social", diz Ferracioli. A interação constante com os contatos nas redes sociais seriam ilusórias. "Comunico com o mundo inteiro, mas não tenho paciência para escutar o outro."

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