• Carregando...
Repertório de Raine Holtz vem de encontro a um processo de desconstrução e aceitação pessoal | Daniel Castellano/Gazeta do Povo
Repertório de Raine Holtz vem de encontro a um processo de desconstrução e aceitação pessoal| Foto: Daniel Castellano/Gazeta do Povo
  • Viela de roda: cordas passam por dentro de uma caixa de teclas. Pressão do toque determina o timbre

Quem circula pela Feira do Largo da Ordem aos domingos já sabe que vai passar por apresentações musicais típicas de rua – uma roda de samba, uma dupla de voz e violão... Ali no meio, entretanto, há algo mais: em frente à Igreja da Ordem, um músico solitário empunha um instrumento que lembra um violino, mas com teclado e manivela, do qual emana uma melodia algo medieval. Trata-se de Raine Holtz e sua viela de roda.

Originária do século 11, a viela de roda é uma espécie de violino mecânico: suas cordas passam por dentro de uma caixa de teclas que, conforme tocadas, pressionam as cordas para tornar o timbre mais ou menos agudo; ao invés do arco do violino, uma roda, movida por meio de uma manivela, fricciona as cordas produzindo o som.

A viela era muito comum em locais de culto até o século 12, depois caiu em desuso, tendo quase desaparecido no século 20. Hoje, ela é fabricada por poucas famílias nos Estados Unidos e Europa seguindo os moldes medievais. Foi entrando em contato com uma dessas famílias norte-americanas que Raine conseguiu adquirir o seu instrumento. No Brasil, a população de vielistas é muito pequena, cerca de 15 pessoas; em Curitiba, são apenas três.

A ideia de ganhar as ruas munido de sua viela surgiu diante de uma necessidade prosaica – pagar o aluguel. Em suas performances, Raine toca músicas sefarditas (judaicas), turcas e gregas. Além do sustento, a empreitada lhe ensinou que, contrariando as expectativas, existem gentileza e amor nas ruas. "A rua desconstruiu meu medo de me relacionar com as pessoas. E como músico, tocar na rua é uma experiência de humildade".

Terapia

Embora a viela seja a menina de seus olhos, a relação de Raine com a música é muito mais profunda. Ele não possui formação acadêmica, seu processo de aprendizado é autodidata e foi desenvolvido muito mais por uma necessidade emocional do que propriamente por interesse musical. "A música foi a maneira que eu encontrei de funcionar no mundo. Antes de um gosto, é uma necessidade, uma forma de terapia muito íntima e pessoal", explica.

Determinado a dar continuidade a esse processo de terapia, Raine entregou-se à criação musical solitária: já produziu quatro álbuns independentes e artesanais, em um estúdio caseiro. O desenvolvimento de cada disco é doloroso, e a gravação, "um exorcismo", ele define.

A metáfora náutica está presente em todos os seus trabalhos porque, explica ele, a vida inteira sentiu-se em fuga, refugiado em um navio em alto mar. As imagens de força, profundidade e turbulência associadas ao oceano também estão bem marcadas em suas composições.

Desconstrução e aceitação pessoal – eis os dois processos terapêuticos experimentados por Raine por meio de seu projeto musical batizado de Through Waves (na tradução livre, algo como através das ondas).

Os três primeiros álbuns formam uma trilogia: Sail, Schooner (2010) fala de fuga e depressão; Deconstruct the Debris (2011) relata o processo traumático de desconstrução da própria identidade que o músico enfrentou quando se compreendeu transgênero; Santuário (2012) é o álbum de aceitação, do reencontro consigo mesmo. O quarto trabalho, Schadenfreude (2013), narra experiências vividas com o outro.

Embora "pouco palatável", como o próprio Raine define, seu trabalho (autobiográfico) musical tem um retorno positivo. "Percebi reações de identificação. Muitas pessoas escutaram e disseram: ‘Nossa, é isso mesmo!’. A gente costuma achar que vivenciamos uma dor única, mas a dor não é exclusiva", finaliza.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]