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Personagens de No Tempo das Diligências: o conhecimento e a aceitação do outro | Divulgação
Personagens de No Tempo das Diligências: o conhecimento e a aceitação do outro| Foto: Divulgação

Os 75 anos de três clássicos

O Caderno G Ideias deste sábado discute um trio de produções lançadas em 1939, todas indicadas ao Oscar de melhor filme, que se tornaram obras referenciais para a sétima arte

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Primeira das 22 colaborações entre John Ford e John Wayne, uma das parcerias mais longas, produtivas e bem-sucedidas da história do cinema, No Tempo das Diligências a(Stagecoach), mais que um western, é um road movie no qual Ford manipula uma grande variedade de personagens, cujos diversos perfis psicológicos provocam os conflitos que são o motor da trama.

Primeiro western sonoro de John Ford (1939), o filme ganhou status de cult e perenidade como um dos melhores de todos os tempos, paradigma das formas clássicas do cinema feito nos Estados Unidos. Orson Welles nunca escondeu que tinha visto a obra-prima de Ford muitas vezes antes de realizar este outro prodígio cinematográfico chamado Cidadão Kane (1941). E o que de significativo encontrou Welles em Stagecoach? Entre um elenco de muitas virtudes, o fascínio maior ficou por conta da medida exata entre tipologia social americana, profundidade psicológica dos personagens, o lirismo das imagens e da epopeia histórica impressos em uma história simples, narrada também com simplicidade, segundo os cânones do western, gênero no qual Ford se movimentava com espantosa mobilidade.

Para chegar ao roteiro final escrito por Dudley Nichols, outro parceiro-fetiche de Ford, o argumento fundiu duas referências literárias, o que confere ao material um selo de nobreza de origens pouco comum ao gênero – muito embora estas raízes não tenham trazido para o resultado final qualquer marca de pedantismo ou artificialismo. O conto "Bola de Sebo", escrito por Guy de Maupassant no século 19, oferece elementos ambientados em plena França invadida pelo exército prussiano e que se apoiam em quatro fatores: uma viagem com destino comum; um grupo de passageiros vindos de diferentes classes sociais e que são obrigados a uma convivência indesejada; um inimigo comum a combater; e um sacrifício pessoal de vários deles como elemento de redenção.

Isso serviu como uma luva para John Ford, que também tinha lido um texto jornalístico escrito nos EUA nos anos 1920 por Ernest Haycox, intitulado "Diligência para Lordsburg". Mas o filme não teve a intenção de ser uma crítica mordaz contra a burguesia, segundo a ótica francesa de Maupassant, mas sim um declarado ataque ao puritanismo norte-americano a partir de uma visão mais amável das mazelas humanas, expressas em personagens bem matizados.

Personagens

No Tempo das Diligências começa numa pequena cidade do Texas, de onde mulheres puritanas expulsam uma prostituta, Dallas, que é obrigada a embarcar numa diligência rumo ao Oeste. Com ela viajam um médico alcoólatra (também expulso), um refinado jogador profissional, um vendedor de uísque, um homem circunspecto, uma lady de família de militares, o xerife que está caçando o cowboy Ringo Kid (John Wayne), suspeito de assassinato, e um banqueiro que está fugindo com o dinheiro dos clientes. Todos são obrigados a conviver no apertado interior da diligência, o que proporciona a Ford desenvolver um de seus temas favoritos: o conhecimento e a aceitação do outro, a partir de uma viagem cheia de perigos na qual a trajetória física convive com a moral.

Em seu livro seminal, O Que É o Cinema ? (Livros Horizonte, 1992), o teórico francês André Bazin resume o filme metaforicamente: "No Tempo das Diligências evoca a ideia de um círculo tão perfeito que ele permanece em equilíbrio sobre seu eixo em qualquer posição que seja colocado." Para esta perfeição contribuíram o olhar artístico de Ford, a montagem, os longos travellings e os enquadramentos do iluminador Bert Glennon, que extraíram a melhor essência dos grandes espaços físicos. Mas também e especialmente o caráter de obra-ponte, filme de ligação que funde a tradição da iconografia do western ingênuo dos primeiros tempos com a novidade do novo formato dos personagens, adensados psicologicamente em seus códigos de valores e em suas relações interpessoais sem qualquer perda de autenticidade e verossimilhança.

O roteiro em sua forma final resultou um modelo a ser seguido, a chave para a evolução do gênero. Ford nos legou assim uma de suas várias obras de mestre, a suma, a canção de gesta do Oeste dos EUA, o romanceiro fundamental na formação do país e da consciência de seus habitantes.

Refilmado em duas o­casiões – 1966 e 1986 –, e com seus personagens copiados até serem convertidos em estereótipos de uma cultura, No Tempo das Diligências é um clássico absoluto, vibrante, comovente. E muito divertido. Deixa como legado permanente aos espectadores de qualquer tempo a sábia lição de que se deve olhar mais além de convenções sociais e preconceitos, em busca do que há de humano em cada um de nós.

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