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Ensaísta búlgaro situa a obra de Goya em relação aos conflitos de seu tempo | Francisco José de Goya/Reprodução
Ensaísta búlgaro situa a obra de Goya em relação aos conflitos de seu tempo| Foto: Francisco José de Goya/Reprodução

Ensaio

Goya à Sombra das Luzes

Tzvetan Todorov. Tradução de Joana Angélica d’Avila Melo. Companhia das Letras, 312 págs., R$ 49,50.

  • Maja Desnuda: pintor também retratava membros da realeza

O poeta e ensaísta Paul Valéry (1871-1945) afirmou, em seus estudos sobre Leonardo da Vinci (1452-1519), que pensar profundamente é pensar o mais distante possível da linguagem verbal. Vindo de um homem de letras, tal afirmação pode parecer contraditória. Mas, um exame mais aprofundado de sua obra acusa inserções de signos visuais, tais quais desenhos, gráficos e esboços de pinturas, que dialogam com palavras, formando um todo interdisciplinar que corrobora seu dizer.

Mas, e o contrário, também se dá? Há, na história da arte, pintores que, em menor ou maior grau, seja para refletir sobre suas obras pessoais, seja sobre obras alheias, seja, ainda, sobre a arte pictórica em si, tenham se dedicado à arte verbal?

Se formos procurar um precursor para estes pintores que enveredaram para o verbo, nos depararemos com o caso de Francisco José de Goya e Lucientes (1746-1828). O pintor e gravador espanhol trazia em seus desenhos e gravuras – que produziu prolificamente, ao lado de óleos sobre telas – legendas que, em sua maioria, sintetizavam simplesmente as imagens ali contidas, mas, em outras, como o "Capricho Nº 43", talvez uma de suas obras mais célebres, vinha inserida na própria imagem: "El sueño de la razón produce monstros", constituindo-se em um oximoro com o vocábulo sueño (que, em espanhol, quer dizer tanto sono, quanto sonho) enfatizando a dubiedade do homem que ali aparece debruçado sobre um móvel, cercado por figuras noturnas.

Estas legendas são apenas um traço do que nos legou o artista de reflexivo acerca de sua arte. Goya foi, porque não dizer, um crítico de sua própria obra, bem como da pintura em geral. Deixou, principalmente em cartas a amigos próximos, reflexões que muito contribuem para entender sua linguagem e o seu tempo. É o que demonstra o estudo Goya à Sombra das Luzes, de Tzvetan Todorov, lançado pela Companhia das Letras no Brasil.

Noturno x diurno

A obra é uma biografia intelectual sobre o autor dos Caprichos, calcada ao mesmo tempo em biografias anteriores e nos escritos críticos do pintor. Assim, une os dois polos de reflexão do ensaísta búlgaro, na medida em que situa a obra de Goya em relação aos conflitos de seu tempo, como as guerras e as invasões Napoleônicas. Além disso, analisa sua sintaxe verbo-visual, procurando demonstrar como o artista espanhol prefigura traços de movimentos artísticos posteriores, tais quais o Romantismo e o Alto Modernismo, chegando mesmo à contemporaneidade.

O resultado é um panorama que revela dois Goyas: o Goya diurno e o Goya noturno.

O primeiro deles é o oficial: pintor da corte espanhola, durante o dia retratava membros da realeza, o que lhe valeria fama, notoriedade e dinheiro. Já o segundo, o alternativo, à noite deixava vazar por papéis e telas os devaneios de sua imaginação, produzindo figuras grotescas e monstruosas. O primeiro seria o Goya clássico, que Todorov situa diacronicamente como um mero retratista da Espanha dos séculos 18 e 19, que poderia ser de alguma valia para um historiador interessado em situar a vida pública e privada da elite real de então, mas que, esteticamente, não produziu absolutamente nada de relevante. O segundo seria, para o autor búlgaro, precisamente o Goya que chega até nós: violando os traços lineares do classicismo eminentemente teocrático e harmonioso reinante até então, suas imagens formam um todo essencialmente antropológico, no qual o corpo humano aparece transfigurado, caricaturizado e, em alguns momentos extremos, quase aniquilado. O autor não chega a romper com o figurativo, tarefa que começaria a ser levada a cabo pelo Impressionismo na segunda metade do século 19, mas, segundo Todorov, antecipa, em determinadas obras, tal ruptura.

O mérito maior do estudo é precisamente este: o de não abordar Goya como um autor dos séculos 18 e 19, mas o de, por intermédio das reflexões de seus próprios escritos, trazê-lo aos nossos dias – o autor aborda constantemente o interesse das obras do pintor para o espectador do século 21, à luz de acontecimentos recentes de nossa história, tais quais as guerras da Bósnia, ou os conflitos da faixa de Gaza, por exemplo. E sua leitura das obras seriais de Goya, dos Caprichos às Pinturas Negras é de consulta obrigatória àqueles que se interessam, não só pelas artes plásticas, mas pelo choque entre códigos artísticos e pela arte reflexiva, metalinguística, como um todo.

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