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O passado parece ter sido um lugar interessantíssimo para se viver. Onde mais alguém poderia abrir uma revista chamada Good Housekeeping (algo como "Boa Dona de Casa") e ler um artigo de Virginia Woolf (1882 – 1941)? A autora de Mrs. Dalloway produziu uma série de seis textos sobre Londres ao longo de 1931. Eles começaram a ser publicados bimestralmente em dezembro e foram 1932 adentro.

Com Cenas Londrinas (Tradução de Myriam Campelo. José Olympio Editora, 84 págs., R$ 23), é a primeira vez que o leitor brasileiro tem acesso à essa meia dúzia de trabalhos. Houve uma tentativa de se reuni-los em livro nos EUA dos anos 70, mas a edição foi restrita (750 cópias) e, nela, faltou "Retrato de uma Londrina". Este conto curto é, de certa forma, a cereja da cereja, já que a coleção Sabor Literário, da qual faz parte o lançamento de Woolf, tem a fruta como símbolo.

Descoberto em 2004 pela editora Emma Cahill na Universidade de Sussex, o "Retrato" destoa dos outros cinco relatos por ter uma personagem fictícia como protagonista, Mrs. Crowe. "Era em sua sala de estar que os inúmeros fragmentos da vasta metrópole pareciam juntar-se num todo animado, compreensível, divertido e agradável", escreve a autora, que era londrina. Os outros textos podem ser lidos igualmente como contos ou, talvez, crônicas (embora a escritora não seja personagem em nenhuma delas, detalhe marcante do formato). Em uma terceira possibilidade, o material reunido em Cenas Londrinas funciona também como comentários, derivados de impressões colhidas pela escritora em cada um dos locais que se dispôs a conhecer.

Para "As Docas de Londres", ela organizou uma visita ao local, feita em uma lancha alfandegária. Somente alguém como Virginia Woolf poderia escrever em uma revista chamada Good Housekeeping sobre os montes de lixo que se acumulavam próximo às docas de Londres: "Os extensos montes fumegam e emitem seus vapores acres, sufocantes abrigam inúmeros ratos e fazem despontar um mato compacto, externo e áspero por ali".

Em cada uma das descrições, a voz da escritora suicida é marcante e sem igual. Ela consegue, por exemplo, reproduzir em palavras o trabalho contínuo e repetitivo dos guindastes. "Ritmicamente, habilmente, com uma ordem que produz certo deleite estético, barril é depositado junto a barril, caixa junto a caixa, tonel junto a tonel, um atrás do outro, um em cima do outro, um ao lado do outro em intermináveis arranjos pelas aléias e galerias dos imensos armazéns de teto baixo, simplórios, comuns, inteiramente comuns." No mesmo capítulo, há uma descrição genial de galerias subterrâneas onde se guardam tonéis de vinhos, comparadas a catedrais.

O que se percebe em Cenas Londrinas é uma seqüência de imagens recorrentes na obra de Woolf, afinal ela fala de sua cidade tanto nesses pequenos textos quanto em seus livros, citando o tráfego de pessoas e veículos, os tipos e as catedrais. "Abadias e Catedrais" compara a Abadia de Westminster com a catedral de St.Paul, popular por ter sido onde Diana se casou com o príncipe Charles. A escritora reconhece o esplendor desta, mas dá pistas de preferir o espaço e a serenidade daquela. "Nossa impressão é a de ter deixado a confusão democrática, a monotonia da rua, e entrado numa assembléia brilhante, numa seleta sociedade de homens e mulheres da mais alta distinção."

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