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Os Filhos da Meia-Noite (Companhia das Letras, R$ 64; 608 págs.) é o romance mais ambicioso de Salman Rushdie, mais ainda que Os Versos Satânicos, que o tornaram célebre, mas o obrigaram a longa reclusão por causa de um fatwa emitido pelo aiatolá Khomeini. É curioso que a primeira dessas duas obras, lançada no Reino Unido em 1981, mais tarde receptora de diversas honrarias literárias, de início tenha sido rejeitada por sua casa editora, a Jonathan Cape. "O autor devia se concentrar em contos até dominar a forma do romance", dizia o relatório de leitura. Felizmente, a editora não aceitou esse primeiro exame e submeteu o romance a um segundo escrutínio, que o recomendou.

De fato, parte do motivo pelo qual Os Filhos da Meia-Noite é visto como um livro ambicioso está na forma, desabonada na primeira leitura. Falsamente frouxa, ela passa a idéia de falta de coesão, quando, na verdade, cada frase é prova de como o autor tinha perfeita noção do caminho narrativo a ser percorrido, e cada episódio está alinhavado aos outros por uma estreita teia de conexões. E a mais forte das conexões, a razão de ser, digamos, do romance, está na fusão entre a trajetória pessoal do narrador, Salim Sinai, e a história recente da Índia. Como faz questão de frisar esse herói picaresco: "(...) nasci na Casa de Saúde do dr. Narlikar em 15 de agosto de 1947 (....) no momento exato em que a Índia chegou à independência, eu surgi no mundo".

Aos saltos, indo e voltando no tempo, o narrador conta sua epopéia sentimental. Ele começa mais de 30 anos antes de seu nascimento, enfocando a volta do avô à região da Caxemira. Médico formado na Alemanha, ele conhece a futura esposa por meio de um expediente ardiloso, que dá nome ao capítulo, "O Lençol Furado".

Muçulmanos devotos, os pais de Nasim Ghani cobrem o corpo da filha adoentada com um lençol atravessado por um pequeno furo. Por essa fresta, o médico pode ver apenas a parte do corpo a ser examinada. Acontece que o interesse matrimonial dos pais da moça é grande e, conquanto o recato seja igualmente amplo, eles vão revelando outros pedaços da anatomia de Nasim, pois os padecimentos da jovem, ao invés de diminuir, parecem só aumentar. Aos pedaços, o médico vai juntando a imagem de Nasim, e acaba por apaixonar-se por ela – não sem antes ter sido brindado com a suprema visão de suas nádegas.

De um só golpe, portanto, temos a convergência entre o social e o psicológico, o erótico e o lírico, o geral e o anedótico, que permeia toda a obra. Aos nacos e sem ordem aparente, o narrador também vai descobrindo um retrato de si, dos muçulmanos indianos e da Índia moderna. Trata-se, claro, de um retrato bastante especioso. Como o médico, a partir dos pedaços, o leitor só é capaz de formar impressões, e está, como o pobre noivo, sujeito a enganos.

Além disso, conforme Rushdie confessa na nova introdução, esse painel se baseia em sua biografia, embora só a tenha empregado como "material bruto". O autor também nasceu em agosto de 1947. Seu pai, sua mãe, a irmã, os amigos de escola, a primeira namorada, de uma forma ou de outra, aparecem aqui – assim como Indira Gandhi, que não gostou nada da forma como foi descrita e abriu um processo contra a obra. Rushdie conta que o pai ficou igualmente zangado com o personagem inspirado nele que ficou meses sem falar com o filho.

Quer seja pelos dons "telepáticos" do narrador, quer seja pelas incríveis coincidências que permeiam sua vida, há uma tendência em classificar Os Filhos da Meia-Noite como fantasia. Mas há poucas obras atuais como esta, tão calcadas no real.

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