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Leminski não era um só. Houve, entre tantos, o autor de "Catatau", um dos mais alucinados e inventivos romances – vamos chamá-lo de romance – brasileiros do século 20, e houve o poeta dos efeitos gráficos e dos desconcertos, quase dado ao publicitário – por mais que o mercado editorial tenha se "assustado" com as vendas de "Toda Poesia", Leminski é talhado para a celeridade de nossos tempos. Entre as duas pontas, está "Ensaios e Anseios Crípticos", o 4º livro da série Gazeta do Povo Literatura Paranaense.

"Ensaios" é uma espécie de narrativa de percurso intelectual de Leminski, em que o poeta se coloca fora de sua produção para refletir sobre a história literária brasileira e as questões culturais de Curitiba. É um assombro de clareza, veemência e intensidade. "o silêncio de webern / é também o silêncio de joão gilberto/ entreouvido por augusto de campos/ num silêncio só/ no quarteto samba/ de um silêncio só/ o silêncio dos grandes mestres da ausência/ como mondrian/ o silêncio nó/ o silêncio elipse/ o silêncio substantivo/ o silêncio plenitude do som".

Revisitando a história, de Buda a Pascal, Leminski discute as (in)utilidades da poesia e a forma como a Revolução Industrial transformou todas as coisas em mercadoria, mas sem cair nos buracos dualistas intrínsecos às ideologias. Ele sistematiza as tentativas de dar outras variações ao fazer literário, como no caso dos russos ideológicos e dos franceses burgueses, os cultores da "arte pela arte". "A poesia moderna não existiria sem Baudelaire ou Mallarmé. Isso se deve principalmente ao fato de que esses poetas, libertados dos lastros morais ou patrióticos, puderam fazer a poesia avançar tecnicamente, em termos de linguagem, até os extremos limites, de que o ‘Lance de Dados’ de Mallarmé é o paradigma último."

Impressiona na sucessão de ensaios, poemas e colagens, o frescor de um pensador sem medo de assumir posições. Das críticas às poesias ditas marginais à defesa de Jorge Ben, há inúmeras sentenças desconcertantes. "O primeiro personagem que um escritor cria é ele mesmo. Só os imbecis procuram um eu atrás do texto literário. Em literatura, a própria ‘sinceridade’ é, apenas, uma jogada de estilo. Um escritor medíocre não consegue ser ‘sincero’. Técnica, coração."

E um livro extraordinário não poderia carecer de um momento próximo ao grandioso. E é quando Leminski resolve destrinchar o panorama cultural de Curitiba que a coisa se agiganta. "Se Curitiba desaparecesse, hoje, evaporasse, como por encanto, na neblina da manhã, puff!, que falta faria no ‘cenário cultural brasileiro’? Alguma? Nenhuma? Ó dúvida cruel. Sofrimento atroz. Quem dá o tom a Curitiba é o imigrante."

A partir da estética do estrangeiro com dificuldades de adaptação e de sua idolatria ao trabalho-trabalho-trabalho, Leminski especula que a nossa baixa representatividade artística atual está relacionada à nossa repressão sexual e sensorial da vida, herança dos primeiros povos europeus a se estabelecer na cidade. "Guardar todo dia um pouco para ter muito no dia da necessidade é seu mote, o lema bordado nas toalhas de parede pelas operosas mãos das esposas, nunca ociosas. ‘Fazer economia’ é amealhar, reter, poupar. Assim se chega a uma ideologia da poupança: guardar é superior a usufruir. Inteligente é o poupar, não o desfrutar. Segurar, não soltar. Freudianamente, Curitiba é a retenção das fezes. Nosso pecado é a avareza. Ora, criar é esbanjar. Só por excessos se cria."

Um livro provocante, espirituoso e, sobretudo, fundamental. "Em termos planetários, escrever em português e ficar calado é mais ou menos a mesma coisa". Ainda bem que Leminski não se levava tão a sério - embora muitos de seus adeptos sim (o que é triste)-, e entregou este compêndio da integridade e honestidade intelectual. Uma obra-prima. GGGGG

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