• Carregando...

O Perfeccionista, a biografia de Bernard Loiseau (1951 – 2003), escrita pelo americano radicado na Europa Rudolph Chelminski, é o relato cuidadoso da vida de um dos chefs mais importantes da história da França.

Na verdade, não é exagero afirmar que Loiseau se tornou um mito, protagonista de uma vida digna de um astro do cinema ou da música. Com um fim trágico que marcou seu nome na história da gastronomia.

Para quem via de longe, Loiseau tinha tudo que alguém poderia desejar uma mulher bonita, inteligente e dedicada, chamada Dominique, dois filhos saudáveis, uma profissão fascinante e uma carreira bem sucedida. Era dono de um hotel, ligado ao seu principal restaurante, o La Côte d’Or, e de mais três estabelecimentos.

De perto, porém, o empreendedor revelava vários problemas. Os piores estavam ligados ao que mais tarde foi diagnosticado com "depressão provocada pela exaustão" por um psiquiatra de Lyon, Ladislas Kiss, ouvido por Chelminski.

No dia 24 de fevereiro de 2003, depois de servir almoço para os poucos que se dispunham a encarar a "melancolia hibernal" de Saulieu, região onde estava o Hôtel de la Côte d’Or e, neste, o restaurante. Foi para casa para tirar uma soneca como de hábito. Encontrou o filho de 11 anos assistindo à televisão, ficou com ele por alguns minutos e, em seguida, o mandou brincar em outro lugar porque queria dormir.

O filho saiu e Loiseau usou a arma que ganhou da mulher para disparar contra a própria cabeça. Quando foi encontrado, estava morto há tempo.

Para descrever o périplo que levou o filho de Pierre e Edith da cozinha da família Troigros (a mesma de Claude, apresentador do programa Menu Confiança, do canal GNT), como o responsável pelo carvão e pela limpeza da cozinha, ao topo da culinária francesa e, conseqüentemente, mundial, o biógrafo Rudolph Chelminski relata fatos de modo cronológico, pontuando-os com detalhes sobre dezenas de receitas e pratos elaborados.

Alguns funcionam como símbolos e justificam o folclore em torno da chamada haute cuisine française (aliás, o livro é um festival de termos em francês inevitáveis na descrição dos pratos e técnicas, mas evitáveis em outros casos, daí talvez seja o autor exibindo sua erudição).

O melhor exemplo é o teste do ovo frito, usado por um chef, chamado Point, para analisar a destreza de um profissional disposto a trabalhar em sua cozinha. Segundo Point, um ovo precisa ser frito na manteiga, que deve derreter sem nunca estalar ou espirrar. Com o fogo sempre baixo, a clara deve ficar cremosa e a gema, quente, mas líquida.

Anos depois, Loiseau foi além, recusando-se a submeter o ovo ao contato com algo tão "vulgar" quanto o calor de uma frigideira. Ele cozinhava o ovo em um pires untado com manteiga, colocado sobre um recipiente com água fervente. Mais tarde, passou a cozinhar a gema e a clara em separado para reuni-las somente no final da operação. Para um leigo, é impossível ler esses detalhes e não pensar "claro que o sujeito enlouqueceu". Mas são pequenas obsessões como a de Loiseau que certos críticos gastronômicos adoram louvar.

Entre os veículos que abordam o mundo das cozinhas francesas, a principal referência é, sem qualquer dúvida, o Michelin. Também conhecido como o "guia vermelho".

O Michelin 2007, para se ter uma idéia, tem 2 mil páginas e um número similar de restaurantes avaliados. Neste ano, Anne-Sophie Pic se tornou a primeira mulher em muito tempo a conquistar a cotação máxima (três estrelas) do guia.

De acordo com Chelminski, a Michelin é segunda maior fabricante de pneus do planeta, atrás somente da Goodyear. Na virada do século 19 para o 20, André Michelin (1853 – 1931), então responsável pela empresa, resolveu criar uma forma de divulgar sua marca. Imaginou que um guia de hotéis e restaurantes, em princípio gratuito para seus clientes, poderia incentivar as pessoas a viajar mais, consumindo mais pneus.

Não demorou muito para o guia, que passou a ser vendido na década de 1920, virar uma referência continental. A cotação de uma, duas e três estrelas surgiu na edição de 1933. Foi quase uma segunda revolução francesa.

Dos mil e tantos estabelecimentos citados no guia, mais da metade não tem estrela nenhuma. Aqueles que têm uma (significando "um restaurante muito bom em sua categoria"), sentem-se "escolhidos". Os que têm duas ("comida excelente, merece um desvio do caminho") viram febre e, por fim, as três estrelas ("cozinha excepcional, merece uma viagem especial") transformam um restaurante em referência internacional e seu chef, em celebridade. Sem mencionar que os lucros aumentam entre 30% e 60%.

Essas promessas bastaram para Loiseau viver 35 anos em função do sonho de conquistar as três estrelas (na verdade, asteriscos) e se matar diante da perspectiva de perdê-las. O biógrafo não hesita em procurar culpados e aponta o dedo para parte da crítica gastronômica francesa – bastante cruel com o La Côte d’Or –, além de mostrar uma tendência a simplificar as motivações e o estado de saúde do biografado, sempre na tentativa de explicar o inexplicável (no caso, o suícidio).

A escrita de Chelminski não empolga, mas a figura de Bernard Loiseau – "maior que a vida", para citar uma expressão cara aos americanos – basta para justificar a leitura do livro.

* * * * *

Serviço: O Perfeccionista – A Vida e a Morte do Chef Bernard Loiseau, de Rudolph Chelminski (Record, 420 págs., R$ 50).

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]