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Português leu texto inédito no Litercultura 2014. | Hugo Harada/ Gazeta do Povo
Português leu texto inédito no Litercultura 2014.| Foto: Hugo Harada/ Gazeta do Povo
  • Disputado: Capela Santa Maria ficou pequena.
  • Manuel da Costa Pinto (esq.) mediou o bate papo com Valter Hugo Mãe.

"Fiz um requerimento para poder morar aqui neste lugar", disse um "menos nervoso" Valter Hugo Mãe na noite de quinta-feira na Capela Santa Maria, em Curitiba. O escritor português foi o convidado do segundo capítulo do Litercultura 2014, e proferiu uma palestra para uma plateia enorme – a fila por ingressos de última hora quase contornava a esquina -, diversificada e interessada.

Mãe divulga seu último romance, A Desumanização, e o título de sua conferência foi meio que o oposto do que está entranhado à obra: "Simplesmente Humano." O escritor avisou que estava mais calmo, pois não falaria assim, "sem pensar muito", já que a proposta era ler um texto inédito, produzido especialmente para o encontro.

Mas Valter não precisava se desculpar, já que fala com lucidez impressionante e parece ter nas palavras o domínio do mundo.O escrito era sobre memória e tempo. Foi talhado com a peculiaridade já identificável do português, aquilo que o mediador Manuel da Costa Pinto chamou de "altíssima sensibilidade lírica." Talvez – é uma hipótese viável – essa seja uma resposta para o fenômeno VHM. Porque seus livros não são exatamente fáceis, apesar de carregarem consigo a capacidade de dialogar com todos justamente porque falam do que é universal e muito humano – como o tempo, aquilo que Valter queria que fosse "todas as pessoas que amo juntas. E discos e mangas e morangos. E Elza Soares e Leonard Cohen e Ney Matogrosso."

A essa altura, a conferência havia virado uma missa, em que a mais breve tosse interrompia algo fundamentalmente importante. Mas o tempo, seguiu Valter, é um roedor. E não podemos deixá-lo vencer. "Se ninguém acompanhar a nossa história, seguimos sem sentido."

Eram várias as pessoas que gravavam aquela leitura, sabendo da importância literária de um material inédito de VHM. Consta que, na tarde de quinta-feira, em uma entrevista para uma rádio de Curitiba, o português precisou imprimir o texto para levá-lo à Capela. Fez questão de, depois de dar CTRL + P, deletar o arquivo e qualquer possível rastro dele. "O texto para mim é sagrado. Há que se respeitar o verbo", diria o português logo depois.

Os temas memória e tempo fundiram-se tranquilamente em histórias pessoais. Mãe falou de afeto – "só o afeto é uma inteligência importante apesar de o coração ser um órgão atarefado" -, e lembrou da morte do pai, a quem não conseguia ver, dias depois, como uma massa de carne ou um simples conjunto de ossos. "Poderia o esqueleto de meu pai ser a sua memória? Não. O amor é a memória. Quem só ama por fora é porque não entendeu nada."

Foram exatos 27 minutos de leitura antes da exibição de um trecho do filme O Sentido da Vida, de Miguel Gonçalves Mendes, cineasta que também levou ao cinema parte da vida de José Saramago.

Valter Hugo Mãe surge como personagem em imagens rodadas na Islândia, cenário de seu último livro, e ao som de Sigur Rós. O filme ainda não foi finalizado, e terá outras figuras importantes da música do país do gelo, como Björk – "o mundo descobriu a Islândia por causa dessa mulher de um metro e cinquenta".

Perguntas

Valter Hugo Mãe proibiu o mediador de fazer perguntas sobre a utilização de letras minúsculas, característica dos livros o nosso reino, o remorso de baltazar serapião, o apocalipse dos trabalhadores e a máquina de fazer espanhóis (os dois primeiros foram publicados pela Editora 34 e os dois últimos pela Cosac Naify), sequência conhecida como tetralogia das minúsculas. Fora isso, as perguntas, de Manuel e do público, foram as mais diversas. Parece – e isso causa um pouco de inveja - que VHM sempre tem um discurso cristalino na ponta da língua, seja para falar do Salazarismo – "todos os ditadores, todos que têm a pretensão de agir pela maioria, à esquerda ou à direita, estão errados" -, seja para se emocionar com a lembrança de sua primeira vez no Brasil, quando de certa forma retornou à Angola, terra onde nasceu; para analisar politicamente a Europa e sua neo-xenofobia – "o lugar do mundo onde vivo está a regressar assustadoramente em alguns aspectos" – e para, sem pieguices ou convencionalismos, enjeitar o racismo. "É possível que alguém se desentenda com um negro. Ou um branco, ou um amarelo. Mas alguém que odeie todos os negros, brancos ou amarelos só pode ser demente", disse VHM, para posteriores aplausos.

Ao final do evento, uma fila enorme. Senhoras, alguns novos nomes da literatura local, e muitos jovens se postaram no pátio da Capela Santa Maria. Com livros à mão, à espera do autógrafo. A cena, como definiu um amigo, era digna de show de rock. Mas quem estava no palco era um escritor português de 42 anos que faz referência a Herman Russel, Béla Tarr e Ingmar Bergman. Vai entender.

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