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Juan José Saer: os pampas jamais o abandoram | Divulgação
Juan José Saer: os pampas jamais o abandoram| Foto: Divulgação

Juan José Saer (1937-2005) não gostava de classificações: romance psicológico, romance policial, de aventuras, era sempre romance. Não gostava também de ser chamado de escritor latino-americano porque para ele isso era só uma categoria histórica e geográfica. Suas origens e sua vida explicam um pouco dessa atitude: filho de sírios nascido em Serodino, Argentina, em 1937, deu aulas de cinema e crítica estética na Universidade do Litoral por alguns anos, começou a publicar ainda nos anos 1960, mas mudou-se para a França em 1968 onde ficou até morrer, em 2005. A maior parte de sua produção literária e ensaística é portanto fruto de seus anos franceses, que dividiu também como professor do curso de Letras da Université de Rennes. De qualquer maneira, é um escritor de língua espanhola que, se tomamos como base o romance As Nuvens, originalmente de 1997, traduzido por Heloisa Jahn para a Companhia das Letras, não esqueceu os pampas onde nasceu.

Romance dentro de um romance, escrito no tempo – final? – das brincadeiras narrativas pós-modernistas, o texto apresenta um personagem nosso contemporâneo, argentino, professor universitário em Paris, que recebe de um amigo um disquete (perdoem o anacronismo, mas é isso mesmo) com uma história que lhe teria sido entregue por uma senhora nonagenária, e que afirma tratar-se, seguramente, de ficção. Essa afirmação, claro, é daquelas que servem pra provocar a impressão do seu contrário, mas funciona bem. É esse disquete que, na verdade, contém a história de As Nuvens.

Trata-se da narrativa do Dr. Real, médico interessado nas "enfermidades da alma", formado na Europa e pupilo do Dr. Weiss, especialista holandês que decide abrir uma casa de saúde em Buenos Aires. O momento é crítico. Na passagem do século 18 para o 19 a Espanha lutava para que as "más influências" da Revolução Francesa não chegassem a suas terras e especialmente a suas colônias. Mas uma instituição de saúde poderia na verdade afirmar a presença do colonizador... Depois de apresentações e pedidos, os dois médicos abrem a casa das Três Acácias, hospital de tratamento e repouso que receberá doentes diagnosticados segundo, diz o Dr. Real, os "últimos avanços da ciência" como vítimas de "mania, melancolia e outras doenças mais ou menos conhecidas da alma". Há ainda outros aspectos progressistas nas intenções do Dr. Weiss que, sem intenções filantrópicas, deseja aplicar-se a suas pesquisas mas faz os "ricos" pagarem bem para que alguns pobres possam também ser atendidos. A casa dura vários anos, mas por razões políticas e passionais tanto o médico holandês quanto o argentino são "expulsos" do país depois de verem a casa destruída.

Mas o Dr. Real, numa perspectiva já temporalmente distanciada, diretor de um hospital em Rennes, quer na verdade contar uma viagem que fez em 1804 para ir buscar alguns doentes. Sai de Buenos Aires no outono em direção ao norte, "arrebanha" os cinco doentes mas vê sua volta atrasada pelas chuvas do inverno. Quando a caravana (doentes, guias, soldados e prostitutas que o médico só descobre mais tarde) finalmente parte, problemas vão aos poucos atrasar ainda mais o retorno: o calor, os alagamentos, o fogo na planície, o cacique Josesito – ameaça constante que representava a resistência da terra ao colonizador – e por fim a tormenta de Santa Rosa, chuvarada sem fim que se iniciou exatamente em 30 de agosto, como tinha avisado Osuna, o guia.

Dos pampas húmedos aos pampas secos e de volta aos úmidos, a caravana desenvolve uma viagem que já foi chamada pela crítica de anti-épica. O narrador Dr. Real lê Virgílio durante a viagem e afirma sempre querer contar a história... real. A formação setecentista do narrador e sua profissão criam uma narrativa coerentemente aplicada em descrições racionais e contidas, mas a viagem e suas circunstâncias às vezes o subvertem: "Éramos a efervescência do vivente, capim, animais, homens, acrescentando à extensão interminável e neutra do inanimado a leveza colorida e tragicômica do delírio, que nos fazia conviver numa multiplicidade de mundos exclusivos e diferentes, forjados de acordo com as leis da ilusão, que certamente são mais férreas do que as da matéria." O mundo incivilizado pode subverter a noção do "real", mas o resultado não apela para o fantástico de Borges ou mágico de Cortázar. Se a linguagem de que o Dr. Real se serve parece às vezes não dar conta de tratar de tudo aquilo que ele vê e de que precisa tratar, seja a imensidão da planície, sejam as variações da loucura, as descrições minuciosas repassam ao leitor a responsabilidade: que cada um compreenda como puder e chegue a suas próprias conclusões. O que separa o louco do não-louco, a planície de capim e horizontes do céu azul, os cavalos mansos dos "desdenhosos", os índios convertidos dos índios rebeldes... O que faz desse mundo, não europeu, um também mundo?

Guimarães Rosa nos disse que o sertão está em toda parte. Se os espaços nos definem, nos forjam, o pampa de Juan José Saer também jamais o abandonou.

Serviço

As Nuvens, de Juan José Saer. Companhia das Letras, 192 págs., R$ 40,50.

Sandra M. Stroparo é professora de Literatura na Universidade Federal do Paraná.

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"Faz pelo menos uma semana que a onda de calor cozinha a cidade. Do céu azul, sem uma única nuvem, o sol envia uma luz onipresente e árdua, que tosta as árvores, turva a percepção e embrutece o pensamento. Somente à noite o calor dá uma certa folga, mas com o horário de verão, medida administrativa que, como ele gosta de ironizar, até as galinhas reprovam, a esta altura do ano o sol nunca acaba de se pôr, e pouco depois das três da manhã, quando, por causa do calor, ainda não se conseguiu adormecer, rompe a madrugada, lívida, a leste, e o sol intolerável reaparece."

Trecho de As Nuvens, de Juan José Saer, com tradução de Heloisa Jahn

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