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J.T. Leroy, autor de "Sarah", que veio ao Brasil na Flip e é um jovem escritor dos EUA com prestígio internacional, não é quem dizia ser. Pelo que foi apurado pelo escritor Stephen Bleachy na New York Magazine, e repercurtido no "New York Times"; os livros de J.T. foram escritos por Laura Albert (a morena da foto), uma desconhecida cantora de punk rock que aparenta já ter passado dos 50. E o J.T. Leroy (de peruca loura na foto) que foi apresentado a Winona Ryder e outras estrelas de Hollywood, que viajou o mundo (Brasil incluido) falando com a imprensa, seria (segundo o próprio "NYT", nesta nova reportagem) Savannah Knoop, uma jovem estilista, meia-irmã do marido de Laura.

Em suma, Savannah era uma garota de peruca loura se fazendo passar por um rapaz transgênero, cujos livros eram escritos por uma roqueira de meia-idade. E J.T. Leroy não é uma pessoa. É uma instalação. Mas os livros são de verdade. Independente de quem os escreveu, os livros estão aí. Autobiográfico ou ficcional, "Sarah" é um romance sedutor e emocionante.

E agora? Trata-se de uma fraude literária a la Milli Vanilli; ou de uma brilhante paródia viva ao mercado editorial que daria orgasmos a Andy Warhol? Acho que só o tempo dirá. Como Laura Albert, supostamente o cérebro por trás da "instalação", ainda se recusa a contar seu lado da história, não se sabe qual era sua intenção.

Só posso dizer uma coisa: bem feito. Não para J.T. e Laura. Bem feito para nós. Nós, jornalistas e leitores, que vivemos nessa cultura da fofoca.

Quando foi publicado nos EUA em 2000 (eu morava lá na época), "Sarah" teve boas críticas, boa vendagem (de lá pra cá, já foi publicado em 20 países) e criou comoção. Comoção por contar a história supostamente autobiográfica de um garoto que, mal entrara na puberdade, era prostituído pela própria mãe em pontos de caminhoneiro. Causou tanta comoção que eu nem tive saco de ler o romance na época. Só fui lê-lo ano passado, quando saiu a primeira edição brasileira. E achei que ia muito além da comoção. É um bom livro, bem escrito. Mais que uma autobiografia, um cativante delírio sobre uma criança sofrendo pela ausência de amor da mãe; associei-o ao realismo fantástico. E até agora, mesmo com o escândalo, não soube de nenhum crítico dizendo "o livro deixou de ser bom".

Mas o que teria acontecido se "Sarah" tivesse sido assinado não por J.T. Leroy, isto é, não por um susposto jovem que na vida supostamente real passara por situações próximas às do personagem, e sim por Laura Albert, uma escritora iniciante de meia-idade? Impossível afirmar, mas pode-se arriscar. Aposto que "Sarah" teria boas críticas na imprensa especializada em literatura. E só. Dificilmente teria sido destaque em toda a imprensa americana. Não teria despertado curiosidade de leitores que não buscam nos livros apenas boas histórias, mas também a sensação voyeurística de estar espiando a "vida real" de outra pessoa. Logo, não teria vendido tanto. Não teria aparecido nas vitrines da Barnes & Noble. Não teria sido lançado no Brasil e outros 19 países, possivelmente só no Canadá e nos maiores mercados da Europa. Talvez, sequer tivesse sido lançado nos EUA, pois não despertaria interesse das editoras.

Façamos um paralelo com Dennis Cooper. O autor americano - um de meus favoritos ainda vivos - foi uma das pessoas que mais apoiaram J.T. Leroy quando "ele" surgiu. Cooper é um autor prestigiadíssimo entre parte da crítica americana e européia, com fãs fidelíssimos, mas em número bem menor que os de J.T. Leroy. E por que um é menos célebre que o outro? Cooper escreve sobre um mundo muito mais sórdido que o de Leroy (tanto que, quando começaram os boatos sobre o "verdadeiro" J.T., muita gente supos que os livros fossem escritos por Cooper), mas nunca criou tanta polêmica. E por que não? Cooper nunca disse que não escrevia ficção. Ao contrário, ele declara que escreve para se livrar dos seus desejos mais ocultos, para não sentir a tentação de atuar sobre eles. Ou seja, tudo ali não passa de fantasia, é uma não-fofoca. Mas aposto que se um dia Cooper dissesse "sim, 'My loose thread' é autobiográfico, eu realmente matei um garoto de 14 anos e sodomizei o cadáver", seus livros venderiam muito mais.

Fato é que o mundo das letras está cada vez menos para George Orwell e cada vez mais para "Big Brother", o programa. Não tiro o meu da reta, não. Como jornalista, acredito que sempre tenha perguntado "o livro é autobiográfico?" ao entrevistar um escritor. Mas não sou só eu. Isso é generalizado. E não é culpa só da imprensa, mas também dos leitores. Todo mundo fica curioso com um livro que desvenda um lado oculto da vida de alguém. Seja o da Lolita Pille, o da Danuza, o da Bruna Surfistinha, seja quando sai alguma nova biografia de Marcel Proust que faça paralelos entre sua vida e sua obra. Se o livro é pura e simplesmente ficção, gera muito menos interesse, atinge um público bem mais restrito. E também é culpa das universidades, dos estudiosos, dos literatos, que vivem escarafunchando a vida pessoal de Proust como se isso fosse o mais importante para se compreender "Em busca do tempo perdido". Tudo isso acontece porque vivemos num contexto de fofoca e voyeurismo.

(Tenho uma amiga, Luciana Pessanha, que dá uma resposta ótima se alguém pergunta se os contos de seu livro "Ao vivo" são autobiográficos: "Só aquele em que a protagonista mata um cara e se atira pela janela". Com os dois livros que lancei, o que mais me surpreendeu não era a pergunta sobre serem ou não autobiográficos, mas o tom da abordagem. Quem fazia a pergunta sempre vinha com uma carinha de esperto, um sorrisinho maldoso, um jeitinho de "descobri algo sobre você", ou seja, cara de fofoqueiro mesmo. Até aqui, neste blog, ainda me espanto quando vejo gente que entra nos comentários e, em vez de discutir o tema, a idéia, o escrito, quer discutir o que acredita ser a minha vida ou o que acredita ser a minha personalidade)

Por tudo isso, acho que a "instalação J.T. Leroy" é muito, muito mais importante do que possa parecer à primeira vista. Mais do que se sentir enganados, era hora de os consumidores de livros, os jornalistas, os editores e os acadêmicos se perguntarem: "Será que a gente só deu atenção a ele porque queria espiar sua vida miserável? Será que perdemos o apreço pelas boas histórias, a capacidade de se emocionar com uma narrativa, e só queremos saber de fofoca? E se assim for, qual o futuro da ficção?".

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