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Um verso da música "Beautiful Boy", de John Lennon (1940 – 1980), diz que "vida é o que acontece a você enquanto está ocupado fazendo outros planos". Daria para fundar uma religião a partir de uma verdade como essa. Jim Jarmusch baseou sua filmografia nela. Se ele traduz em imagens a inexorabilidade da vida, isso é verdade, sobretudo, em Flores Partidas, a alternativa adulta à estréia de Harry Potter e o Cálice de Fogo, em cartaz somente no Unibanco Arteplex.

Nos primeiros minutos, Don Johnston (Bill Murray) é abandonado por Sherry (Julie Delpy) e, no instante em que ela sai da casa, dá para entender o porquê. Don fecha a porta e seu rosto parece oscilar entre a indiferença e a perplexidade. Nunca tristeza. No mesmo dia, ele recebe uma carta anônima revelando a existência de um filho que desconhecia. O rapaz de 19 anos saiu de casa em busca do pai e pode aparecer a qualquer momento.

O vizinho e amigo Winston (Jeffrey Wright), aficionado por romances policiais, resolve ajudá-lo a descobrir quem escreveu a correspondência. Don vive do dinheiro que ganhou com computadores (não se sabe de que forma) e, sem mais nada para fazer, cria uma lista das prováveis mães de seu filho hipotético. Winston pega o papel e cria um plano mirabolante de viagem, mapeando as ex-namoradas, marcando vôos, reservando hotéis e carros.

A carta pode ter sido uma brincadeira de mau-gosto, mas há a chance de ser autêntica. A busca pela resposta conduz Don e o filme. Espécie de ritual iniciático, Flores Partidas tem o ritmo e a atmosfera de uma produção européia. É um filme em que silêncios e olhares precisam de interpretação. O fato de esses silêncios e olhares partirem muito de Bill Murray faz toda a diferença.

Em alguns momentos, Don pode lembrar o Bob Harris de Encontros e Desencontros ou o Steve Zissou de A Vida Marinha, mas sem a ternura do primeiro ou o cinismo do segundo. Na essência, Don é um perdido. A notícia de que talvez seja pai, somada à cena do funeral de dom Juan no clássico que vê na tevê, o coloca em uma posição nada confortável. Insatisfeito com algo que não sabe o que é, embarca na viagem mesmo contrariado. Quando o marido de uma ex-namorada mal disfarça a surpresa ao ouvir que ele, um cinqüentão, era solteiro ainda, Don vai do constrangimento à irritação. Ele é uma aberração. Para suas ex-namoradas, um fantasma.

Flores Partidas ganhou o Grande Prêmio do Júri no Festival de Cannes deste ano, categoria mais importante depois da Palma de Ouro. Ao falar de aflições universais, é o trabalho mais sensível e acessível de Jarmusch, conhecido por ser um diretor cerebral, autor de Dead Man, Mistery Train, Sobre Café e Cigarros, entre outros. Mas não faltam elementos caros a sua arte, como uma trilha sonora descolada (composta pelo músico etíope Mulatu Astatke, de 62 anos), personagens bizarros (todos no episódio envolvendo Penny, interpretada por Tilda Swinton) e posicionamentos inusitados de câmera.

O elenco é inatacável. Além de Murray, Jeffrey Wright como o amigo etíope é hilário. As atrizes Sharon Stone (linda, ainda), Frances Conroy (a mãe da família Fisher em A Sete Palmos), Tilda (Orlando) e Jessica Lange (a donzela de King Kong, aos 57 anos) são um capítulo à parte. Tempo depois de terminada a projeção, elas continuam na memória. Mas a imagem de Bill Murray permanece sobre todas. A cena derradeira, capaz de desestabilizar qualquer um, pega todas as questões da história e as arremessa de volta para você. É de tirar o fôlego. GGGGG

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