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Presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan
Presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan| Foto:

A Turquia passa por uma agressiva crise econômica que pode se espalhar e afetar outras economias, especialmente emergentes, como o Brasil. A lira turca já perdeu mais de 70% do seu valor em face ao euro desde o início do ano. Para financiar expansão econômica e de infraestrutura, o país contraiu diversos empréstimos internacionais na última década, em moeda forte. Deixando os números de lado, o atual cenário turco inclui déficit em conta corrente, dívidas pendentes, minguadas reservas internacionais e pouca confiança de investidores. Não é necessária fluência em “economês” para saber que essa é uma combinação preocupante; de fato, análises puramente econômicas não seriam suficientes para entender como chegou-se a esse ponto adverso que pode contagiar outras economias. Elementos políticos regionais e internacionais possuem papel central.

Golpe de Julho de 2016

Uma tentativa de golpe de estado ocorreu na Turquia na noite do dia quinze de Julho de 2016. Até hoje, diversas dúvidas, suspeitas e acusações pairam sobre o ocorrido. O fato é: o então presidente Recep Tayyip Erdogan saiu fortalecido após os eventos. Instaurou um estado de emergência que durou dois anos. Nesse período, alegando investigar e punir os elementos golpistas, conduziu uma política de mão de ferro nas forças armadas, no Judiciário, em meios acadêmicos e contra a imprensa. Os totais são impressionantes.

Mais de 180 mil funcionários públicos foram suspensos ou exonerados, cerca de 10% do total; desses, 50 mil foram ou estão presos. O número total engloba mais de 10 mil militares, incluindo mais de uma centena de generais e almirantes, e centenas de juízes. Ao menos quinze universidades e milhares de escolas, fundações e organizações civis foram fechados pelo governo. Dezenas de jornais, revistas, canais de televisão e estações de rádio. Todos acusados de apoiarem ou terem relações com a tentativa de golpe. Dezenas de bilhões de dólares foram confiscados de centenas de empresas supostamentes ligadas aos golpistas.

Segundo o governo turco, o principal mentor do golpe e rival de Erdogan é o clérigo muçulmano Fethullah Gülen, atualmente residindo nos EUA. Até 2013, Gülen era figura próxima de Erdogan, e o racha ocorreu após um escândalo de corrupção. O clérigo coordena um movimento que leva seu nome, embora seja mais conhecido pelo termo Hizmet (“Serviço” em turco). Seus objetivos autodeclarados são a promoção da paz, do conhecimento e do acesso ao conhecimento. Hoje, a organização é condenada pela Turquia, pelo Conselho de Cooperação do Golfo e pela Organização para a Cooperação Islâmica como uma organização terrorista, e Gülen é procurado pelas autoridades turcas.

Eleições de Junho de 2018

As recentes eleições turcas consagraram a posição de Erdogan como principal líder do país. Originalmente programadas para Novembro de 2019, as eleições inauguram as mudanças constitucionais que mudaram o sistema de governo na Turquia: de um semipresidencialismo em que o poder executivo estava no primeiro-ministro para um presidencialismo em que o presidente acumula tanto a chefia de Estado quanto a de governo, tal qual no Brasil. Erdogan foi premiê entre 2003 e 2014, quando tornou-se presidente. Em teoria, um cargo cerimonial, mas exercendo o verdadeiro poder na Turquia, como eminência parda. Nas últimas eleições, o partido do presidente, o Justiça e Desenvolvimento (AKP), também conquistou a maioria no parlamento unicameral.

Caso cumpra apenas o atual mandato, Erdogan deixará o poder em 2023, após duas décadas à frente da Turquia. Mesmo durante as eleições, a economia do país já era uma preocupação importante. Esperava-se que a vitória eleitoral contribuísse para a melhoria econômica. O que ocorreu foi o contrário. As suspeitas de fraudes eleitorais, incluindo a prisão do candidato da minoria curda, que ficou em terceiro lugar no pleito; os dois anos de estado de emergência, com consequente diminuição da liberdade de expressão; e a perspectiva de maior concentração de poder em um líder com políticas econômicas unilaterais, todos esses fatores aumentaram a preocupação internacional.

Agências de classificação de risco de crédito fecharam suas representações na Turquia, alegando que não conseguiam transparência suficiente para seu trabalho. Notas de crédito rebaixadas, investimentos retirados e empréstimos cobrados colaboraram para o atual cenário de crise na Turquia. Embora o Banco Central da República da Turquia (TCMB) e a Agência de Supervisão e Regulação Bancária (BDDK) já tenham tomado medidas para contornar a crise, é importante ter em mente que esses órgãos não estão lidando apenas com fatores econômicos, mas com a consequência de dois anos de políticas que causaram a erosão da confiança e o crescimento da insegurança internacional perante o país.

Mísseis antiaéreos e caças de última geração

A atual década é recheada de casos de atrito entre Erdogan e os países ocidentais. A Turquia é país-membro do Conselho da Europa desde 1949; da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) desde 1952, durante a Guerra Fria; e é candidata à entrada na União Europeia desde 1987. Desde a Segunda Guerra Mundial, a Turquia possui boas relações com seus aliados Ocidentais. O desgaste vêm do que é visto por Erdogan como má-vontade europeia em relação ao processo turco de associação à União Europeia e também questões ligadas aos interesses das comunidades turcas dentro da Europa, especialmente os cerca de quatro milhões de turcos e descendentes na Alemanha.

Frise-se que essa comunidade está na Alemanha de acordo com as leis e os interesses alemães. A maioria chegou ao país nas décadas de 1960 e 1970, com convite do governo alemão ocidental; ou descende desses. A Alemanha, então em fase de reconstrução e crescimento econômico assombroso, necessitava de mão de obra, devido ao déficit demográfico que enfrentava, consequência dos sete milhões de alemães mortos na Segunda Guerra Mundial. O nome desses imigrantes é Gastarbeiter, literalmente “trabalhador convidado”.

No mesmo período, a distribuição de forças no Oriente Médio começou a mudar radicalmente. A retirada das forças sírias e israelenses do Líbano, a invasão do Iraque em 2003, a tomada de Gaza pelo Hamas em 2007, a projeção regional iraniana, a chamada Primavera Árabe de 2010, a guerra na Síria e formação do Daesh são alguns dos eventos que demonstram como a região mudou desde quando Erdogan chegou ao poder. Para garantir os interesses turcos e a projeção do país como potência regional, Erdogan buscou variar os parceiros do país e desprender as ações turcas dos parâmetros ocidentais.

Isso pode ser relacionado ao cenário de crise econômica, já que se reflete nas pautas comerciais turcas, que conta com diversidade de parceiros. Dentre os principais destinos de exportações turcas estão desde países da região, o Iraque e os Emirados Árabes Unidos, quanto países europeus e os EUA. Nas importações, somente Alemanha e China possuem mais de 10% cada do mercado turco, com relações volumosas também com a Rússia e os EUA. Além dessa variedade comercial, a Turquia ampliou seu leque de opções perante a região, passando ao uso da força quando considera um fator necessário para a defesa de seus interesses.

O país participou direta e indiretamente do conflito na Síria, e teve essencial papel na crise de refugiados, com milhões de sírios cruzando a fronteira terrestre entre os dois países. A Turquia também esteve relacionada no conflito contra o Daesh. Principalmente, mobilizou grandes contingentes para ações no norte da Síria e no noroeste iraquiano. Os interesses turcos na região miram os grupos curdos que controlam territórios com autonomia. Isso é visto pelo governo turco como uma ameaça nacional, possível incentivo aos curdos que residem dentro da Turquia para buscarem a independência. Diversos grupos curdos são considerados terroristas pelo governo.

Em contraste, os curdos sírios são apoiados pelos EUA, que em teoria são um aliado turco na OTAN – mais uma contradição nessa relação. A guerra na Síria levou a uma crescente aproximação entre Erdogan e Putin, presidente da Rússia, a principal rival turca desde o século XVIII. Foram assinados acordos bilionários para a construção de uma usina nuclear de tecnologia russa na cidade turca de Akkuyu e para a compra dos novíssimos sistemas antiaéreos russos S-400. A Turquia justificou sua compra com críticas aos EUA, que se negaria em vender equipamentos de sensibilidade similar. Um comportamento que não é digno de um aliado, segundo Erdogan. E isso gerou uma reação.

A Turquia é uma das parceiras de desenvolvimento do novo caça F-35; algumas estimativas colocam um valor total de US$ 1,5 trilhão até 2070 no desenvolvimento do equipamento. E os turcos desejam receber os cem aviões que contratou, assim como sua  tecnologia sensível. Alegando violações de direitos humanos nos últimos anos, além de um comportamento que “sabota” a OTAN, três senadores dos EUA, de ambos os partidos, propuseram um projeto para suspender essa entrega. Também limitaria a transferência de tecnologia e conhecimento técnico relacionados à manutenção dos aviões. Um dos temores é de que isso caia em mãos russas. O resultado foi a distensão das relações.  

Pastor protestante e sanções

Outro elemento desse quebra-cabeças é a detenção do pastor Andrew Brunson, um cidadão dos EUA que reside na cidade turca de Izmir desde 1995. Ele está preso desde outubro de 2016, acusado de ser um terrorista e um espião ligado ao movimento Gülen. Na verdade, praticamente todos os cidadãos dos EUA que residiam na Turquia foram detidos, inclusive os funcionários de missões diplomáticas. O que torna a situação de Brunson singular é que os outros 22 detidos possuem dupla cidadania; ou seja, são também cidadãos turcos, e estão à mercê do governo de seu país. Já Brunson possui uma única cidadania.

Existe a acusação, que não é totalmente desprendida da realidade, de que a Turquia prendeu o pastor protestante para usá-lo como moeda de troca, insistindo na extradição de Gülen por terrorismo. As autoridades dos EUA, entretanto, alegam que as evidências contra o clérigo turco não são substanciais o suficiente para justificar a extradição. Donald Trump, presidente dos EUA, teria ordenado prioridade total nas negociações para a libertação de seu cidadão. Ela teria sido acordada para Julho, em contrapartida ao apoio dos EUA na libertação de ativistas turcos presos em Israel. O governo turco, porém, não teria cumprido sua parte no acordo, insistindo em Gülen.

O tempo verbal é necessário pois o acordo é uma especulação ventilada pela imprensa, algo ainda não confirmado. O fato é a reação do governo Trump. Impôs sanções contra a economia turca em retaliação ao que é visto como a detenção ilegal de um de seus cidadãos. Foi a primeira vez que o governo dos EUA adotou  tal ação contra um aliado da OTAN. Bens de políticos turcos foram congelados, tarifas foram impostas ao aço turco, que tem (tinha?) nos EUA seu principal destino. Estuda-se o bloqueio de recursos que são repassados via organizações internacionais. Tudo isso agrava a crise turca e diminui ainda mais o crédito do país perante investidores internacionais.

Erdogan promete retaliar, e anunciou o boicote de eletrônicos dos EUA, além da taxação de importações variadas, desde cosméticos até automóveis. Enquanto os chineses certamente anseiam por esse enorme mercado em potencial, Erdogan comentou de uma eventual associação da Turquia aos BRICS e coloca a culpa da crise em uma conspiração internacional contra o país e contra seu governo. No cenário mais amplo, não se trata apenas de uma crise financeira, de um circuit breaker em uma bolsa de valores. As relações desgastadas entre aliados, a busca por influência política em uma das regiões mais estratégicas do mundo e a projeção de uma potência regional são elementos essenciais.

E por qual motivo isso importa? Em fins da segunda década do século XXI, está mais do que demonstrado que as relações internacionais possuem grande impacto em cenários domésticos e internos. Um brasileiro ganha seu salário em real, mas a comida que ele compra segue o preço internacional. A crise turca afeta uma das vinte maiores economias do mundo, um país com localização de vital importância, cujo desempenho econômico afeta um cenário muito mais amplo. O que inclui as chamadas economias emergentes, como o Brasil, ainda mais somado ao ano eleitoral brasileiro. Compreender o que acontece no mundo não é mais um luxo.

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Nessa estreia como colunista da Gazeta do Povo, após diversas colaborações, gostaria de agradecer aos editores da Gazeta pela confiança e pelo convite, em especial a Isabella Mayer de Moura. Espero cumprir bem minha função de trazer um pouco da política internacional toda semana em um grande veículo. Também gostaria de agradecer o amigo e jornalista Ubiratan Leal pelo incentivo e apoio nessa trajetória, assim como aos ouvintes do podcast Xadrez Verbal. Meu amigo e irmão Matias Pinto, meus professores e professoras, e meus familiares também são merecedores da minha gratidão.

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