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Encontro entre o presidente americano Richard Nixon e o líder do Partido Comunista Chinês Mao Tse Tung, em 1972. Foto: U.S. National Archives and Records Administration/ Domínio Público
Encontro entre o presidente americano Richard Nixon e o líder do Partido Comunista Chinês Mao Tse Tung, em 1972. Foto: U.S. National Archives and Records Administration/ Domínio Público| Foto:

A brilhante análise do mundo contemporâneo feita por Manuel Castells em seu livro “Ruptura” tem como foco a crise da democracia liberal. Para que tal foco seja obtido foi necessário escolher analiticamente: o autor dá preferência ao que mostra dos problemas da política global contemporânea, com ênfase na crise da democracia.

Este não é o foco analítico mais adequado para entender o fracasso relativo da economia brasileira na era da globalização. E isto porque o país conheceu uma melhoria política no período, saindo do quadro mais que precário da ditadura militar para uma democracia razoavelmente adequada ao tipo de sociedade existente. Mesmo sem ser brilhante do desempenho, a democracia instalada na nação a partir de 1984 vem sendo capaz não apenas de processar os pesados solavancos econômicos como ainda fazer isso com alternância real do poder.

Além da melhora no regime político, aconteceram ganhos reais na vida social, especialmente a partir da década de 1990. Quase todos os indicadores de educação, saúde e distribuição de renda apresentam sinais positivos no período – sem que isso signifique uma sociedade igualitária.

Enfim, o Brasil das últimas décadas não é a Europa que ocupa boa parte dos pensamentos de Castells, com economia pujante e democracia com problemas. Então, para se pensar na espécie de crise das últimas décadas no país é preciso olhar outra espécie de indicador. No caso, aquele que relaciona bem desempenho econômico a longo prazo com um certo tipo de organização do Estado – independentemente da cor política por trás desta organização ou das ideologias tradicionais.

Para cumprir tais requisitos e fugir do tradicional, nada melhor que começar pela China, a nação mais bem sucedida economicamente na era global. Em 1972, quando Mao Tse Tung tirou uma foto ao lado do presidente norte-americano Richard Nixon e anunciou que seu país, milenarmente isolado, se atiraria aos negócios globais, pouca gente acreditou: como um regime comunista que mantinha 100% da economia na forma estatal poderia ser bem sucedida neste caminho competitivo? Neste ano de 1972, apenas para notar o tamanho do desafio econômico, o PIB chinês era menor que o brasileiro.

Passados 46 anos a China continua sendo formalmente uma ditadura comunista. Mas é a segunda economia do mundo, com um PIB no qual o Estado entra com algo em torno dos 40% e o setor privado com os restantes 60%. Não é preciso mais que este dado para entender, pelo lado da economia, que um setor privado exuberante foi criado e aproveitou as oportunidades da globalização. As empresas globais chinesas compram empresas locais no Brasil em penca.

O partido comunista continua mandando sozinho na política, mas continua mandando exatamente porque comandou a profunda reforma do papel do Estado na China, adaptando-o às necessidades do mundo global com muita eficiência.

Já vimos noutra coluna (caso o leitor queira consultar o arquivo, aquela publicada há duas semanas) como Castells analisa o sucesso da Europa na globalização: resultado de uma profunda transformação na estrutura estatal, com a criação de uma instância supranacional de governo, a União Europeia, responsável por dar conta dos desafios globais – o que exigiu, necessariamente, uma limitação relevante da margem de intervenção dos estados nacionais.

Aconteceram outras reformas no Estado relevantes no mesmo período – nem sempre bem sucedidas. Para quem não se lembra, na década de 1970 o grosso dos países comunistas orbitava em torno da União Soviética, num ambiente denominado Guerra Fria e no espaço geográfico da chamada Cortina de Ferro – imagem cuja maior materialidade estava no Muro de Berlim, separação entre os mundos capitalista e comunista.

Luto para explicar para meu filho de 32 anos o que era então este portento – desaparecido sem deixar rastro visível em nenhum dos países que o compunha. Houve uma grande reforma dos Estados, feita por decomposição, para que cada fração deste mundo se adaptasse à globalização – o que exigiu a reconstrução em cada nova nação surgida de uma esfera de mercado e de ajustes do Estado para manter um grau de competição global.

Vale notar que a União Europeia teve um papel fundamental nesta reconstrução, seja absorvendo o colar de nações do antigo Pacto de Varsóvia ou mesmo outras saídas da antiga União Soviética. Além disso, construiu as relações econômicas que permitem à Rússia sobreviver neste cenário.

Todos eles fizeram reformas de Estado, acabaram com as leis comunistas, recriaram um setor privado empresarial. Cada um a seu modo, reformando com a integração na União Europeia ou com ditaduras de fato como a chinesa, foram se moldando ao mundo globalizado. Mas todos mudaram o sentido da ação do Estado.

Esses são os casos de maior ou razoável sucesso na adaptação ao mundo global. Também se pode encontrar exemplos na via inversa, aqueles que recusaram a adaptação do Estado, independentemente da orientação ideológica do governante. Aquele que é possivelmente o maior fracasso econômico mundial nestas décadas vem a ser a Venezuela. Ali se reformou para andar ao contrário da corrente do mundo. Quando Hugo Chavez chegou ao poder por um golpe militar, em 1999, o país tinha cerca de 800 mil empresas e uma população de 20 milhões de pessoas; a maior empresa do país era a estatal de petróleo, que produzia cerca de 3 milhões de barris diários e tinha aproximadamente 15 mil funcionários.

Dezenove anos de luta contra a globalização depois sobraram algo como 250 mil empresas cambaleantes. A estatal de petróleo tinha 80 mil funcionários em 2011; a produção de petróleo caiu pela metade, a estatal responsável por ela cambaleia em meios a saques de todo tipo e dando emprego para apaniguados usarem o patrimônio como arma política. O pib per capita, que era de 15,6 mil dólares em 1998, caiu para 9,3 mil dólares em 2016. Um milhão de pessoas famintas e desesperadas fugiram do país no último ano.

Pensando nos exemplos do mundo, sejamos sinceros. Em termos de organização do Estado, o Brasil está bem mais para Venezuela que para China ou União Europeia. A razão é quase simplória: o Estado continua sendo nacional, os sonhos continuam sendo apenas locais, num tempo em que o Estado puramente nacional é, cada vez mais, um item irrelevante.

O mundo global é um espaço econômico no qual Estados nacionais desadaptados tiram toda a nação do crescimento. A razão é singela: apenas empresas privadas têm atuação global. Nos países em que o governo entende a se adapta a esta situação, as empresas privadas começam a disputar mercados mundiais.

Pense por um só instante: os produtos relevantes que você compra são globais. Quem pensaria em projetar um celular para um mercado nacional, por maior que seja? E um software para este celular que só tem um mercado limitado? Ou um avião que só voa em um único país?

O Estado brasileiro, apesar da democracia, continua montado como um antigo Estado soberano modelo década de 1970. Como uma máquina de escrever elétrica, um telefone fixo com teclado digital. Preparado para separar e isolar o mercado local do mercado global, como era nos tempos da Guerra Fria. É obsoleto.

Sim, estamos em campanha, hora de escolher – inclusive um lugar no mundo. Não sei para você, caro leitor, mas para mim as alternativas mais vistosas que se oferecem a este eleitor para tratar deste Estado. Há populistas atrás de voto. O que os une? Oferecer um futuro estatal ainda ao molde da Guerra Fria – não importa o sinal ideológico. Falam como se o mundo fosse dividido ideologicamente como era há quatro décadas. Chegando ao poder, se não mudarem muito, vão chegar lá atrás, levando o estado brasileiro para um lugar semelhante ao venezuelano, ganhe quem ganhar.

Lembram o Príncipe de Salina, personagem do inesquecível filme “O Leopardo”, de Luchino Visconti. Meteu-se com os revolucionários garibaldinos que fizeram o Estado Nacional italiano adaptado ao capitalismo concorrencial do século 19. Fez o suficiente para receber o convite para ser um senador na nova ordem.

Na hora de optar entre o mundo da aristocracia que começava a ruir e a nova ordem, preferiu continuar sendo príncipe. Não queria ser agente de mais mudanças – e explicou a razão ao emissário que o convidou para o senado:

“—Nada vai mudar. Os sicilianos se consideram perfeitos”.

Do alto de suas aposentadorias plenas, da estabilidade, dos reajustes que garantem aumentos de salário acima da inflação (e a produtividade negativa por definição), os defensores do corporativismo à esquerda e à direita adoram a perfectibilidade da Constituição que garante tudo isso e pedem passagem à massa ignara no rito eleitoral que moldaram.

E rezam para que tudo isso sobreviva, mantendo o Brasil como a grande jabuticaba do mundo global. Ah, sim, a jabuticaba lembra outro tema mundial, imperativo – e ausente nesta campanha.

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