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Albari Rosa/Gazeta do Povo
Albari Rosa/Gazeta do Povo| Foto:

O Brasil importou nessas eleições um debate de países ricos: a desigualdade salarial entre homens e mulheres. O tema ficou quente a partir da deturpação de uma frase de Jair Bolsonaro, sobre os incentivos da legislação trabalhista para que homens ganhem mais. Guilherme Boulos, do PSOL, equiparou o problema à escravidão moderna, propondo a criação da “Lista Suja do Machismo”.

Funcionaria como a “Lista Suja do Trabalho Escravo”: expondo os patrões machistas, que pagam mais a homens, e impedindo-os de fechar negócios com o Estado ou pegar empréstimos com ele. Boulos não vai poder implementar a proposta, já que caminha para ser o presidenciável mais mal posicionado da história do PSOL, em quase todas as pesquisas com menos votos do que Cabo Daciolo.

Mas Boulos pode começar uma lista suja pelo PSOL, que paga a homens quase o dobro do que paga a mulheres.

Os dados sobre os salários no partido não são públicos. Mas são públicos os dados sobre remuneração dos comissionados nomeados pelo PSOL no Legislativo – onde antes da campanha estava contratado o próprio presidente do partido.

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Na Câmara dos Deputados, os comissionados do PSOL ganham 89% a mais do que as comissionadas – virtualmente o dobro. Enquanto a remuneração dos homens é R$ 13.530, a de mulheres é de R$ 7.160. São dados de agosto último (Liderança do PSOL).

O PSOL pode escolher quanto cada funcionário vai ganhar concedendo “cargos” diferentes para cada um. Assim, pode escolher premiar um funcionário melhor dando um “cargo” maior. Hipoteticamente, um partido machista poderia dar cargos melhores para homens, ainda que o trabalho exercido seja igual. Dessa forma, homens vão ganhar mais do que mulheres.

A Liderança do PSOL na Câmara possui 3 cargos de R$ 19.050.  Esses 3 melhores são dados para homens. O segundo grupo de maiores salários é de R$ 13.310, com 4 vagas: 3 são para homens, apenas 1 para mulher.

Já o pior cargo, de menor valor, é de R$ 5.180, também com 4 vagas: mas agora é o contrário. São 3 para mulheres e somente 1 para homem.

Portanto, embora o partido não possa escolher um valor arbitrário qualquer para dar de salário – como na iniciativa privada –, ele pode distribuir os cargos diferentes da forma como achar melhor. E prefere dar os melhores aos homens.

O PSOL alegou que tudo o que está escrito acima é falso. Homens e mulheres receberiam igual no partido, desde que desempenhem o mesmo “cargo”. É óbvio: em todo o serviço público, “cargos” iguais pagam valores iguais. A falácia está em confundir o termo “cargo” do direito administrativo com a sua acepção comum, relacionada a atribuições.

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Assim, ainda que dois funcionários tenham a mesma atribuição, podem receber cargos diferentes. No caso da Câmara, o cargo é uma sequência de 3 letras e 2 números. O CNE13 se diferencia do CNE12 que se diferencia do CNE10 porque cada sequência dessa representa um salário diferente. Ou realmente há uma óbvia divisão de trabalho entre o “assistente técnico de gabinete”, o “assessor técnico adjunto B” e “assessor técnico adjunto C”?

Dizer que uma assessora técnica adjunta C ganha igual a um assessor técnico adjunto C não muda o fato de dentro dessa salada de nomes burocráticos o PSOL reservar os nomes e códigos de maior salário para homens.

Ainda que se aceitasse o argumento do PSOL, ele equivale a aceitar que as atribuições mais complexas são feitas por homens, como se dizendo que não existem mulheres aptas para serem, por exemplo, um “CNE07”.

Para negar os dados apresentados, o PSOL apontou que este colunista usou apenas os salários dos funcionários comissionados na comparação, e não o dos servidores concursados que estão temporariamente lotados na Liderança do PSOL.

O motivo da escolha é óbvio: o PSOL não escolhe a remuneração fixa de um servidor concursado, mas escolhe como distribuir os cargos comissionados.

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Dentro da remuneração do servidor concursado, o PSOL escolhe apenas quem vai receber qual “função”. E, de novo, as melhores funções são a dos concursados, não as das concursadas. Dessa vez a diferença é de só “30%”, ou cerca de R$ 1.500 em média.

Piora!

O PSOL alega que na soma de cargos e funções, a remuneração é igual entre os sexos.

Ora, se como vimos as mulheres recebem os piores cargos e, no caso das concursadas, as piores funções, como os salários totais seriam iguais? Simples: a diferença é compensada pelo fato das concursadas terem um salário fixo maior.

Ou seja, antes da divisão de funções no PSOL, essas mulheres ganhavam mais que os homens!

O resultado não é trivial: o salário maior de um servidor concursado está associado a um posto melhor, um concurso público mais difícil. Aceitando essa premissa, mulheres que por mérito passam em concursos mais difíceis recebem valores menores no PSOL do que homens que passaram em concursos menos difíceis. Assim, temos a igualdade.

A emenda é pior do que o soneto. Se já era contestável dizer que homens recebem os melhores cargos no PSOL porque têm atribuições diferentes, o último argumento mostra que homens recebem salários maiores ainda que as mulheres tenham se mostrado mais aptas em concurso público.

Feita toda esta discussão, isso quer dizer que o PSOL é machista? Ou, na linguagem dos debates de gênero, o PSOL é um esquerdomacho, um feministo?

Não necessariamente.

É perfeitamente possível que homens estejam nos melhores cargos porque fazem um trabalho diferente das mulheres. É possível também que servidoras concursadas não tenham o mesmo interesse de receber as melhores funções que seus colegas homens – quem sabe por motivos de maternidade.

Mas a discussão ilustra como uma Lista Suja do Machismo é temerária. Se nem o PSOL consegue ficar livre dessa controvérsia, o que dizer de uma empresa, em que a remuneração possui critérios de pagamento muito mais complexos, por exemplo relativo à produtividade? Apenas a média salarial diferente significa que há discriminação?

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A polêmica é parecida com a que Bolsonaro enfrentou na entrevista do Jornal Nacional, quando confrontou que a apresentadora da bancada recebia bem menos do que o apresentador. Ela justificou que não desempenhavam as mesmas funções.

Se de fato existe um hiato salarial entre homens e mulheres, ele tende a ser bem menor do que a comparação simples sugere, como no caso da Lista Suja do Machismo ou do JN. Da discussão acalorada nos países ricos, é emblemático o famoso vídeo da entrevista com o psicólogo Jordan Peterson.

Na teoria microeconômica, a discriminação faz pouco sentido. Se para um mesmo trabalho é possível pagar menos para mulheres, não haveria razão para homens serem contratados. A não ser que para o empregador seja tão importante discriminar que ele estaria disposto a pagar por isso, dando um salário maior para o homem sem contrapartida para o negócio. Outra possibilidade teórica é que a discriminação seja dos consumidores, dispostos a pagar pela discriminação.

O Prêmio Nobel George Akerlof apresentou em anos recentes uma abordagem diferente para o problema, baseada na sociologia. Normas sociais levariam mulheres a se identificarem com alguns postos e homens com outros – mesmo que não haja requisitos de capacidade física diferente. A teoria explicaria porque existem muitas enfermeiras e poucos enfermeiros, por exemplo, e o hiato salarial seria resultado de escolhas como essa.

No Brasil, a Reforma Trabalhista criou uma multa em caso de discriminação salarial de gênero, equivalente à renda média nacional. Ironicamente, o PSOL foi contra a reforma. Bolsonaro, que recebeu a pecha de ser a favor da desigualdade, votou a favor.

Aliás, é por meio de uma declaração do candidato que essa discussão ganhou tanta centralidade no debate nacional. Em um país com tanta pobreza e crônica taxa de baixo crescimento, parece fazer menos sentido esta discussão importada.

Mesmo na tal declaração de Bolsonaro – em que ele arremata dizendo que muitas mulheres merecem ganhar mais do que homens – o argumento exposto é o de que o tratamento diferente dado pela legislação trabalhista elevaria o custo do emprego da mulher, compensado com o salário menor. Aliás, o raciocínio “Se eu fosse o empregador” deveria ser o ponto de partida da maioria dos debates sobre mercado de trabalho, evitando medidas fofas que prejudicam os trabalhadores.

Nos termos da economista Ana Carla Abrão: Na prática, a licença-maternidade coloca as mulheres em desvantagem no mercado de trabalho, criando uma assimetria entre os gêneros nas decisões de contratação e promoção.

De fato, muitos países desenvolvidos caminham para a troca pela licença-parental, dividida pelos próprios pais e distribuindo o ônus no mercado de trabalho entre homens e mulheres. São países que também privilegiam um sistema de creches públicas ou jornadas de trabalho parciais, permitindo a maior participação da mulher no mercado de trabalho.

Discutir a substituição da licença-maternidade pela licença-parental ou a expansão das creches parece ser pedir demais neste debate, dominado pelos lacradores. Quem foi contra a Reforma que criou a multa por discriminação não é cobrado por isso (lembrando que é possível separar trechos de um projeto que não se gosta para apoiar apenas o que se gosta).

A Reforma Trabalhista também garantiu que mulheres não perdessem parte do salário quando ficam grávidas (vide esta coluna), e finalmente permitiu empregos formais em tempo parcial,  tudo para revolta dos lacradores.  No limite, como no caso de Boulos, o direito de lacrar o isenta do menosprezo à escravidão (equiparada ao machismo) e até da apresentação de uma regra capaz de punir seus própri@s partidári@s.

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