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Gilberto Gil está se despedindo dos palcos, viajando pelo Brasil com sua última turnê, Tempo Rei. E é provável que muitos leitores, apenas ao lerem o nome do compositor, pararam por aqui ou já estão nos comentários criticando. É o ônus que artistas pagam quando submergem na política e se deixam levar pela correnteza ideológica. Mas é também uma perda do leitor que se afogou junto nessa enxurrada de polarização.
No caso de Gil, porém, é possível que exista algum arrependimento. Para esta turnê, recusou utilizar de leis de incentivo cultural, como a Lei Rouanet. Sua esposa, Flora Gil, também sua empresária, disse: “Não queríamos usar leis de incentivo, nem municipais, nem estaduais, nem federais. A maioria aqui já deve saber o motivo.” Qual seria? Segundo Gil, por causa das “fofocas” de uso de recursos públicos.
“Fofocas” que já vêm de longa data. Em 2010, a produtora do casal captou R$ 800 mil para realizar um show no Teatro Tom Jobim, no Rio de Janeiro, que em 2017 teve sua prestação de contas reprovada pela União, determinando o ressarcimento de R$ 1,08 milhão. Gil e Flora entraram na Justiça contra a decisão e venceram, com a União condenada a aceitar a prestação de contas e a pagar as custas do processo, reconhecendo-se que o show existiu e não houve irregularidade.
Foi para evitar “fofocas” como essa que decidiram não utilizar das tais leis de incentivo agora. Não adiantou. Como na atual turnê há patrocínio dos Correios, as “fofocas” surgiram da mesma forma. Ainda mais porque a estatal está naufragada em (mais) uma crise financeira, com um déficit registrado de 3,2 bilhões de reais em 2024, mas segue gastando em patrocínios, tendo dispensado mais de 38 milhões neste terceiro governo Lula, incluindo 4 milhões para a turnê de Gil.
O artista e sua obra
O mais lamentável – para além da escravização dos artistas por suas ideologias políticas e o consequente pagamento do preço, com a ojeriza de parte considerável do seu público que pensa diferente – é o prejuízo cultural para o país. A olhos vistos, os artistas vêm sacrificando suas obras para pagar o dízimo ideológico, enquanto o público está perdendo a capacidade de discernir o artista de sua obra.
Criamos o hábito não somente de jogar fora a criança com a água do banho, como estamos perigosamente nos acostumando a manter o coração endurecido, tornando-nos insensíveis até em situações em que naturalmente as diferenças – políticas e de outra ordem – seriam deixadas de lado, com a compaixão sendo imediata, como no drama familiar vivido atualmente por Gilberto Gil.

No último show da turnê em São Paulo, na semana passada, Gil recebeu no palco sua filha, Preta Gil, com quem cantou em dueto a música Drão. É público e notório que Preta tem enfrentado um câncer grave no intestino, desde 2023. Natural, portanto, que o dueto não fosse apenas mais um, muito também pela música escolhida, composta por Gil para a mãe de Preta, Sandra Gadelha, com quem ficou casado por 17 anos e se separou em 1981, quando Preta era criança.
Drão era o apelido de Sandra, embora Gilberto Gil não a chamasse assim. Dias depois da separação, ele compôs a música. O divórcio foi de comum acordo, pois o amor de ambos havia se transformado em outra coisa. A ideia da música é justamente essa, do amor ser como um grão que morre e nasce trigo, depois vive e morre pão. Nunca deixaram de ser amigos. Mas nenhuma separação é boa para os filhos e somente anos depois Sandra descobriu que Preta sempre chora ao escutar Drão, símbolo de perda, mais do que de amor transformado.
Há de haver mais compaixão
Com o tempo, a música foi ganhando novos sentidos, tornando-se mais dolorosa, como em 1990, quando Pedro, filho do casal, morreu em um acidente de carro, aos 19 anos de idade. Segundo Sandra: “Com a morte dele, a música passou a me tocar profundamente, acho que por causa da parte: ‘Os meninos são todos sãos’.” Imagine, então, esse trecho da letra agora, com a menina Preta não mais tão sã assim.
Há outro trecho da letra que tem a ver com Preta. Quando se fala de uma cama de tatame, onde o casal dormia. Sandra só deixou de dormir ali quando engravidou de Preta e o médico a proibiu, pela dificuldade que tinha de se levantar. Hoje, é a filha quem luta para se manter de pé. Sandra estava na plateia no show em que a filha e o ex-marido cantaram juntos. Emocionou-se, assim como Gilberto Gil, que não conseguiu segurar as lágrimas no palco.
É perfeitamente possível ser crítico aos Correios, pelos motivos expostos, até mesmo ao artista por aceitar o patrocínio da estatal. Mas isso não pode impossibilitar sentir e expressar compaixão por Gil, Sandra e sua filha, muito menos diminuir o valor artístico de uma das obras-primas do compositor, como é Drão, reconhecendo-se também a beleza humana do dueto feito por ambos em uma situação tão dramática.
Se o tempo é mesmo rei, haverá o momento em que a situação política atual do país se tornará pó de triste lembrança, não mais sufocando a beleza das obras de arte, de qualquer tempo, que sempre permanecem vivas por seu valor intrínseco, independentemente de quem foram seus criadores. Enquanto este tempo não vem, “por isso mesmo é que há de haver mais compaixão”, como Gil canta em Drão, algo que não depende que o inimigo a tenha antes para ser “merecedor” da sua, aqui e agora.