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Tupelo

Clipe de Nick Cave feito com IA abre perspectivas sobre novidade tecnológica

O olhar desconfiado de Nick Cave para a IA acaba de sofrer um abalo
O olhar desconfiado do australiano Nick Cave para a IA acaba de sofrer um abalo (Foto: EFE/Tim Brakemeier)

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A resistência humana diante do novo é um fenômeno tão antigo quanto a própria civilização. Quando Gutenberg inventou a prensa móvel, escribas temeram pela extinção de sua profissão; quando a Revolução Industrial mecanizou a produção têxtil, artesãos quebraram máquinas em protesto; quando a fotografia emergiu, pintores questionaram se a arte pictórica havia chegado ao fim; quando o cinema falado surgiu, atores do cinema mudo viram suas carreiras desmoronarem da noite para o dia. E como não lembrar da passeata contra a guitarra elétrica protagonizada por ícones da MPB, liderados por Elis Regina, em 1967?

É fato que cada avanço tecnológico significativo traz consigo a obsolescência de algo e/ou alguém. Calculistas foram substituídos por computadores, telefonistas por sistemas automatizados, caixas bancários por terminais eletrônicos. Hoje, enfrentamos uma nova fronteira: o impacto da Inteligência Artificial. Diferentemente das revoluções anteriores, que afetaram mais os trabalhos manuais ou de processamento de dados, a IA adentrou territórios antes considerados exclusivamente humanos, como o da criatividade e expressão artística.

Muito antes da atual revolução da IA, Erthos Albino de Souza já explorava as possibilidades poéticas da computação. Considerado um dos pioneiros, Erthos iniciou suas pesquisas revolucionárias nos anos 1970, utilizando linguagens de programação como Fortran e PL1 para criar poemas eletrônicos, antecipando em décadas as discussões contemporâneas sobre criação algorítmica e arte digital. De lá para cá, muito se avançou.

A Xiaoice, desenvolvida pela Microsoft, representa um marco na geração automatizada de poesia. Desde 2017, esta IA tem gerado milhões de poemas para usuários ao redor do mundo, tendo publicado no mesmo ano a primeira coleção de seus poemas, intitulada The Sunshine Lost Windows. A capacidade de Xiaoice de produzir textos poéticos em escala industrial levanta questões sobre a industrialização da criação artística e o valor da escassez na arte. Tradicionalmente, a raridade e a singularidade de uma obra, fruto do gênio e do esforço humano, conferem-lhe um valor intrínseco e de mercado. Nesse novo cenário, a abundância algorítmica desafia essa premissa.

Os efeitos disso já apareceram. A Amazon precisou implementar medidas restritivas para livros autopublicados, como a de não poder ser mais de 3 livros por dia. É evidente que nenhum escritor consegue produzir tal quantidade por conta própria, sem o auxílio ou o uso de IA. E uma rápida observação, compartilhada por muitos analistas do mercado editorial, dos livros mais vendidos na categoria "romance contemporâneo", na mesma Amazon, revela que a maioria tem sido escrita, não apenas auxiliada, por bots de inteligência artificial. Este fenômeno representa uma transformação fundamental no mercado editorial, onde a facilidade de produção algorítmica está redefinindo a oferta e, por consequência, o consumo de literatura.

O verdadeiro criador de cada obra

E quanto ao valor artístico dessas obras? Uma forma de mensuração é mais observável nas artes plásticas, com seus famosos leilões. Em 2018, a obra Retrato de Edmond de Belamy, criada por meio de Redes Adversariais Generativas (GANs) pelo coletivo francês Obvious, foi vendida por US$432,500 em um leilão da Christie's. Convenhamos, não é pouco. Pela primeira vez, uma pintura gerada por algoritmos era reconhecida e valorizada pelo establishment artístico tradicional, forçando críticos e colecionadores a reconsiderar suas definições de arte.

Outro exemplo é o da obra Machine Hallucinations – ISS Dreams – A, de Refik Anadol, que transformou a IA em um pincel cósmico, criando "realidades artificiais" que convertem vastos conjuntos de dados em instalações visuais imersivas. Foi vendida por US$277,200 em 2023. Mas talvez o exemplar mais provocativo seja o de Ai-Da, a robô humanoide equipada com câmeras nos olhos e braços mecânicos que pinta e escreve. Em 2024, sua pintura AI God: Portrait of Alan Turing foi vendida por aproximadamente U$1,1 milhão em um leilão da Sotheby's, levantando questões fundamentais também sobre autoria: quem é o verdadeiro criador, a máquina que executa ou os humanos que a programaram?

Essa discussão ganhou novas camadas de complexidade com o surgimento de bandas e artistas gerados por IA em plataformas de streaming, como o Spotify. O caso mais emblemático até agora é o da banda The Velvet Sundown, que em junho de 2025 emergiu como um fenômeno musical, acumulando mais de 1 milhão de ouvintes mensais em poucas semanas. O que inicialmente parecia ser um grupo de rock psicodélico com estética dos anos 70 revelou-se uma criação inteiramente gerada por Inteligência Artificial, tanto nas músicas quanto nas imagens promocionais, sem qualquer participação de músicos humanos.

O crítico musical Ted Gioia levantou sérias preocupações sobre essa prática, alegando que o Spotify estaria incentivando músicas geradas por IA sob nomes de artistas fictícios para reter royalties que, de outra forma, seriam pagos a músicos humanos. Gioia citou o caso de Johan Röhr, um produtor sueco que, sob centenas de pseudônimos, teria acumulado bilhões de streams com músicas geradas por IA, superando artistas renomados e ocupando posições de destaque em playlists editoriais do Spotify.

Em resposta às críticas, o Spotify não comentou especificamente, mas seu porta-voz defendeu que a plataforma não prioriza músicas geradas por IA e que tem agido para remover faixas geradas que violam suas políticas de conteúdo enganoso, especialmente aquelas que se fazem passar por artistas falecidos. O caso da banda The Velvet Sundown, que inicialmente se apresentava como humana e depois atualizou sua biografia para "projeto de música sintética guiado por direção criativa humana e composto, dublado e visualizado com o apoio de IA", exemplifica a complexidade dessa questão e a pressão por mais transparência.

Ainda somos os mesmos e revivemos nossos pais

Os dilemas éticos são ainda maiores para os casos em que a IA tem a capacidade de “reviver” quem não mais existe, como Elis Regina (sim, a que era contra a guitarra elétrica), que foi digitalmente “ressuscitada” para um dueto com sua filha, Maria Rita, para uma publicidade em 2023. No vídeo, ambas interpretam Como Nossos Pais, de Belchior, enquanto dirigem lado a lado. A campanha gerou comoção, mas também despertou dúvidas sobre o uso de IA para recriar artistas falecidos e os limites éticos dessa prática. Até que ponto é aceitável "ressuscitar" digitalmente artistas para fins comerciais? E como tratar a dimensão do consentimento do artista, dado que seria póstumo, os seus direitos de imagem e a integridade artística do seu legado?

Neste sentido, veja-se o projeto The Next Rembrandt, desenvolvido pela Microsoft em colaboração com pesquisadores holandeses. Foi apresentado em 2016, utilizou IA para analisar meticulosamente a obra do mestre holandês e criar uma nova pintura em seu estilo, utilizando até mesmo impressão 3D para replicar a textura da tinta. Pode uma máquina não apenas imitar, mas genuinamente compreender e reinterpretar o gênio artístico? É provável que respostas a essas perguntas só possam ser dadas com o tempo, com o uso que artistas farão da IA e a qualidade das obras resultantes.

Um vislumbre dessa evolução de percepção, e de como a arte pode se beneficiar do diálogo com a tecnologia, tivemos recentemente com o músico australiano Nick Cave. Em agosto de 2023, Cave articulou com rara clareza esses temores de inúmeros artistas ao redor do mundo. Perguntado a respeito, deu uma resposta no seu blog "Red Hand Files", não apenas criticando o ChatGPT, mas o acusou de ser uma "paródia grotesca" da condição humana, uma "máquina sem limites de desmoralização artística" que representava a "mercantilização do espírito humano por meio da mecanização da imaginação."

Entretanto, agora em julho de 2025, quase dois anos após suas declarações veementes contra a IA, Nick Cave experimentou o que pode ser descrito como uma epifania artística. Seu amigo, o cineasta Andrew Dominik, enviou-lhe de presente um videoclipe de Tupelo, canção de Cave que faz aniversário de 40 anos. Ao assistir ao vídeo, criado com auxílio de Inteligência Artificial que “reviveu” Elvis Presley, Nick Cave se viu confrontado com algo que desafiava suas próprias premissas. "Fiquei genuinamente surpreso", admitiu em seu blog, descrevendo o trabalho como "uma interpretação comovente e inteiramente original" de sua música.

Mais significativo ainda foi seu reconhecimento de que "minha visão da IA como dispositivo artístico amaciou". Uma admissão notável de alguém que havia comparado a tecnologia ao "fogo do inferno". O que tornou o clipe de Tupelo diferente para Nick Cave não foi apenas sua qualidade técnica, mas o contexto de sua criação. Dominik não utilizou a IA para acelerar ou facilitar o processo criativo – as críticas originais de Cave –, mas como uma ferramenta interpretativa, uma nova forma de dar vida visual à música. Ou seja, a IA tornou-se, nas mãos de Dominik, não um substituto da criatividade humana, mas uma extensão dela.

Profético e míope

Nick Cave mantém suas "sérias reservas" sobre a tecnologia, mas sua mudança de perspectiva ilustra algo crucial: a diferença entre IA como substituto e IA como colaborador. O videoclipe demonstrou que quando guiada por sensibilidade e inteligência humanas, a tecnologia pode transcender a mera replicação e alcançar genuína expressão artística. Essa evolução da percepção sobre IA na arte sugere que estamos vivenciando não apenas uma revolução tecnológica, mas uma revolução conceitual sobre o que significa criar.

A IA serve como um espelho peculiar para a criatividade humana. Ao tentar replicar nossos processos criativos, ela nos força a examinar mais profundamente o que torna esses processos únicos. Ao gerar obras que nos emocionam e provocam, ela questiona nossas definições de arte e autenticidade. Ao colaborar conosco, ela expande nossas possibilidades criativas de formas antes inimagináveis. O medo inicial de Cave – de que a IA representasse uma "mercantilização do espírito humano" – pode ter sido tanto profético quanto míope. Profético porque a tecnologia realmente força uma reavaliação de valores e processos criativos. Míope porque assume que essa reavaliação necessariamente diminui o valor humano.

Nick Cave em apresentação ao vivoNick Cave, que há 40 anos lançou a canção Tupelo (Foto: EFE)

Talvez a verdadeira lição desta era emergente seja que a IA não substitui nem preserva automaticamente a criatividade humana, mas amplifica as intenções de quem a utiliza. Nas mãos de bons artistas como Andrew Dominik, ela se torna uma extensão da expressão artística. Nas mãos de quem só pensa no retorno econômico, os algoritmos comerciais sem supervisão humana significativa podem se tornar exatamente o que Cave mais teme: uma paródia grotesca da criação. Ou seja, o futuro da arte com IA não será determinado pela tecnologia em si, mas pelas escolhas que fazemos sobre como integrá-la em nossos processos criativos e sistemas econômicos.

A revolução continua, e suas implicações ainda estão sendo escritas por humanos, máquinas, e pela fascinante, complexa e, às vezes, controversa colaboração entre ambos. Nesta nova era, o artista permanece essencial, talvez não mais como o único criador, mas certamente como o guardião da intenção, o curador do significado, o visionário que transforma possibilidades tecnológicas em expressão humana autêntica. A resistência inicial de Nick Cave, seguida por sua aceitação e eventual colaboração com a IA, espelha provavelmente a trajetória que muitos artistas percorrerão.

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