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Lançado há 15 anos, Uma Noite em 67, de Renato Terra e Ricardo Calil, teve um papel importante em resgatar aquele que muitos reputam ter sido o grande festival da era dos festivais na nossa TV: o III Festival de Música Popular Brasileira, da Record. Foi o documentário mais assistido de 2010 nos cinemas daqui e hoje está disponível no catálogo da Netflix para quem quiser rememorar com imagens de arquivo e ótimos depoimentos a fase de ouro desse tipo de evento e também da própria MPB.
O Brasil vivia a ressaca da bossa nova e assistia ao surgimento de uma nova geração de cantores e compositores que permaneceriam no imaginário nacional por décadas a fio. Até hoje, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque e Maria Bethânia lotam shows e ditam as regras na nossa música, ainda que dividindo espaço com artistas mais populares do universo sertanejo, de vertentes nordestinas, e de ritmos urbanos como o funk carioca (que há muito tempo não é mais restrito ao Rio) e derivados do rap.
Naquele momento em 1967, as turmas pareciam divididas entre os que propunham algo mais conectado com a bossa, o samba e os ritmos brasileiros, como Chico e Edu Lobo, e os que queriam misturar a tradição daqui com os novos ventos roqueiros que vinham de fora, casos de Caetano, Gil e da banda que acompanhou Gil em Domingo no Parque no festival, Os Mutantes. Ao lado de Gal Costa, Tom Zé e Nara Leão, eles inaugurariam um movimento chamado Tropicália, com a proposta de misturar todos esses sons que andavam captando.

Paralelamente a essa galera da MPB, caminhavam os brotos da Jovem Guarda. Essa era uma gangue que pouco queria saber da música brasileira do passado. Estavam afinados mesmo era com o rock e as coisas sacolejantes que vinham de fora. Faziam tanto sucesso que eram convidados a participar desses festivais da Record. Roberto Carlos, o maior ídolo da Jovem Guarda, ficou em quinto lugar no III Festival de Música Brasileira defendendo um samba. Já Ronnie Von, maior rival de Roberto e responsável por lançar Os Mutantes na TV, recebeu uma vaia ensurdecedora na fase eliminatória ao interpretar uma composição do polêmico Carlos Imperial (que adentrou o palco durante a performance para tirar onda e alimentar as vaias, reação que ele tanto apreciava) – cena que, infelizmente, não consta em Uma Noite em 67.
O festival foi vencido por Edu Lobo, com a unânime Ponteio, mas ficou marcado mesmo pelas apresentações de Caetano e Gil. O primeiro defendeu Alegria, Alegria, que no título citava o bordão do fenômeno Wilson Simonal e na letra ia de Coca-cola até o jornal revolucionário O Sol, uma mistura aleatória bem tropicalista. A banda que o acompanhou foi a argentina Beat Boys, com guitarras rascantes e vocais de apoio com sotaque espanhol, que transformavam aquela marchinha num rock poderoso. Gil veio na mesma linha, com adição de um arranjo erudito conduzido por Rogério Duprat, o que lhe garantiu o segundo lugar no festival.
Um tremendo equívoco
A curiosidade é que meses antes da final exibida pela Record, mais precisamente no dia 17 de julho de 1967, Gil tinha participado de uma passeata contra a guitarra elétrica no centro de São Paulo. Ao lado de artistas como Elis Regina, Jair Rodrigues e Geraldo Vandré, o baiano marchou do Largo São Francisco até o começo da avenida Brigadeiro Luís Antônio bradando gritos de guerra e empunhando faixas que rechaçavam a chegada de instrumentos elétricos e estilos musicais que poderiam ser danosos para a MPB. Entre os raros expoentes que não marcharam junto estavam Caetano e Nara Leão, que assistiram àquilo da sacada do Hotel Danúbio achando tudo um tremendo equívoco. Gil se justificaria dizendo que estava apaixonado por Elis, por isso aderiu à causa, sem acreditar na mesma.
Há duas semanas, o jornalista Julio Maria, autor do mais bem-sucedido livro sobre a Pimentinha, Elis: Nada Será como Antes (Companhia das Letras), lançou a tese de que a passeata contra a guitarra elétrica é a maior fake news da história da MPB. Segundo sua coluna em O Globo, a marcha existiu, mas era uma ação de marketing da TV Record para promover o especial Frente Única da Música Popular Brasileira.
A ideia da Record era que os artistas participantes do programa viessem marchando ao lado dos fãs com as tais faixas e dizeres, e terminassem dentro do Teatro Paramount, localizado na Brigadeiro, para a realização do programa de TV. Chico e Simonal, que seriam os apresentadores do show, teriam sido transportados até a passeata num carro da Record e só não teriam descido dele porque a confusão já estava grande e isso poderia atrapalhar a função da dupla naquela noite.
O Frente Única da Música Popular Brasileira de fato aconteceu, a partir das 21h, com números musicais de todos aqueles que estavam na marcha e com a plateia agitando bandeirinhas do Brasil. Mas não há registro de artistas arrependidos de estar na passeata botando a culpa na Record pela invenção de tal ato contra a guitarra – ato esse que pouco depois viraria chacota no anedotário nacional. Em Uma Noite em 67, a passeata é abordada entre os minutos 25 e 30, com declarações de Nelson Motta, Sérgio Cabral (o pai jornalista, não o governador condenado), Caetano e do apaixonado Gil.
- Uma Noite em 67
- 2010
- 85 minutos
- Classificação indicativa livre
- Disponível na Netflix