Você conseguiria deixar sua família para trás para que ela tivesse uma vida melhor? A pergunta norteia o drama argentino Descanse em Paz, que faz sucesso entre os assinantes da Netflix há quatro meses. Baseado no livro Descansar en Paz: Nunca Soñaste con Dejar Todo y Empezar de Nuevo?, de Martín Baintrub, o filme não tem alívio cômico nem qualquer personagem mais malandro, como costuma ser praxe no cinema dos hermanos. O tom aqui é reflexivo, sem espaço para sorrisos.
A história filmada por Sebastián Borensztein e coproduzida pelo célebre ator Ricardo Darín foca o empresário Sergio Dayán (Joaquín Furirel), que vive uma crise financeira daquelas. Não consegue pagar o salário dos funcionários da fábrica que herdou do pai, não honra as mensalidades da escola do casal de filhos, deve para familiares, pegou dinheiro com agiota e recorre a comprimidos calmantes o tempo todo. A esposa não imagina o buraco em que o marido se meteu. E os filhos... Aí é onde o calo realmente aperta.
Descanse em Paz abre com a celebração do bat mitzvá da filha de Dayán. Mesmo com a corda no pescoço, o pai custeia uma grande festa para a menina, e se emociona com as lindas palavras que escuta dela na ocasião. O clima só muda quando o pai percebe que há um capanga do agiota no recinto observando tudo. Em outra cena, Dayán recebe do caçula um desenho em que está retratado como um super-herói. Esse amor que vem dos rebentos é o principal propulsor para o esteio da família tomar uma atitude desesperada.
Vida nova (e triste) no Paraguai
O filme se passa em 1994, ano em que a Associação Israelita Argentina sofreu um atentado com um carro-bomba. A principal cena de Descanse em Paz se aproveita desse fato real. Numa manhã em que pretende se encontrar com o agiota para quitar parte de sua dívida, Dayán é alvejado pelos destroços da ação terrorista. Ele sobrevive, porém se aproveita da confusão gerada no local para se pirulitar de Buenos Aires e recomeçar a vida clandestinamente no Paraguai.
Com o consolo de que mulher e filhos vão receber seu seguro de vida, o empresário reinicia sua trajetória no país vizinho com identidade falsa e dando expediente numa loja de equipamentos eletrônicos. Por 15 anos, uma cadela de rua (que ele sequer batizou) vira seu único foco de afeto. A existência amargurada e repleta de saudades só é interrompida com a popularização do Facebook. Pela rede social, Dayán é tentado a espiar seus filhos crescidos e começa a acalentar o desejo de um reencontro com os entes queridos.
O diretor do longa cria bons momentos de tensão a partir desse fato, deixando o espectador aflito com a possibilidade da família argentina se reunir com o progenitor dado como morto há uma década e meia. Com interpretações sóbrias e pouca invencionice artística, Descanse em Paz é esse suspense dramático com questionamentos éticos que prende no sofá por 1h45, ainda que com um final capaz de desapontar quem torce pela redenção do protagonista. É impossível não se imaginar na pele dele e sentir sua tristeza ao abdicar do convívio familiar. Sua evolução de ser atormentado para sombra e, finalmente, fantasma é dilacerante e justifica o boca-a-boca que tem garantido boa audiência para a obra na Netflix.
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