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Fachada do Museu Paranaense | Aniele NascimentoGazeta do Povo
Fachada do Museu Paranaense| Foto: Aniele NascimentoGazeta do Povo

Desde o incêndio que destruiu o Museu Nacional, no dia 2 de setembro, veio à tona uma pauta que não costuma ser discutida em mesa de bar: a gestão de museus (ou museal), no Brasil. Na ocasião, tanto um oceano de anônimos nas redes sociais quanto o próprio ministro da Cultura, Sérgio Sá Leitão, foram rápidos em colocar a culpa pela tragédia na costas dos responsáveis pela gestão da instituição, a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “É vital refazer o Museu Nacional, revendo também seu modelo de gestão”, declarou, em nota.

Primeira instituição científica do Brasil, o Museu Nacional foi criado em 1818 e passou a ser administrado pela UFRJ em 1946. Com caráter acadêmico e científico, suas exposições são produto não apenas da história da instituição, mas também de suas atividades de pesquisa e ensino. O formato de museu universitário é o mesmo de outros 600 no Brasil todo.

Pouco mais de uma semana depois da tragédia que gerou comoção nacional e internacional, o Ministério da Cultura (Minc) anunciou a criação, por meio da Medida Provisória n.º 850, da Agência Nacional de Museus (Abram). Na prática, ela vem para substituir o Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), autarquia federal que deverá ser extinta. No mesmo dia, outra medida provisória estabeleceu o marco regulatório de fundos patrimoniais para captação de recursos privados direcionados a museus e outras instituições.

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“Trata-se de uma revolução na gestão museológica no Brasil. Haverá mais recursos e mais agilidade e flexibilidade na administração dos museus, com responsabilidade”, comentou Sá Leitão em coletiva de imprensa. 

Como vão funcionar 

A Abram terá natureza jurídica de serviço social autônomo, uma entidade privada sem fins lucrativos. Ela será gerida por um conselho deliberativo e um executivo compostos por membros do governo e de entidades privadas dos setores cultural e museológico. A princípio, a nova agência assume o papel do Ibram em todos os 27 museus que estavam sob a gestão do instituto, incluindo o Museu Nacional e sua reconstrução, o Museu da Inconfidência e o Museu Nacional de Belas Artes. 

De acordo com o Minc, o objetivo da Abram é estabelecer melhores perspectivas de gestão, governança, sustentabilidade e segurança nos museus do Sistema Minc e outros. “A mudança garante uma estrutura jurídica que permite o recebimento de recursos privados próprios ou de doações, inclusive de outros países. A Abram, por ser um serviço social autônomo, terá maior liberdade de gestão e arrecadação de recursos do que instituições diretamente vinculadas à administração pública", informa a pasta. 

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O modelo jurídico é o mesmo do Sebrae, da Apex-Brasil (Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos) e da Abdi (Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial). Os recursos para o orçamento de R$ 200 milhões, superior ao do Ibram, virão da alíquota de 0,3% a 0,6% sobre a folha de pagamento de pequenas e médias empresas, que antes era destinado apenas a essas entidades. 

Regulamentados pela Medida Provisória n.º 851, os fundos patrimoniais, por sua vez, poderão apoiar instituições ligadas à educação, ciência, tecnologia, pesquisa e inovação, cultura, saúde, meio ambiente, assistência social e esporte. Da modalidade conhecida como endowment, esses fundos podem arrecadar e gerir doações de pessoas físicas e jurídicas e seus rendimentos devem ser aplicados às instituições e programas a que estão vinculados. 

Apelo ao setor privado 

Criar novos mecanismos de captação e administração de recursos privados voltados aos museus, como o governo fez com as medidas provisórias publicadas na semana passada, só funciona se houver interesse desses entes privados em fazer doações. Em países como os Estados Unidos e Inglaterra, onde existe uma prática intensa por parte de filantropos e portadores de grandes fortunas de realizarem doações para instituições culturais, os fundos patrimoniais são um sucesso e servem de exemplo. 

Em 2017, o Museu de Arte de São Paulo (Masp), instituição privada sem fins lucrativos e de utilidade pública fundada em 1947 por Assis Chateaubriand, optou pela criação de um fundo patrimonial no formato de endowment, o mesmo do que trata a MP 851. O intuito é garantir estabilidade financeira e perpetuar o patrimônio do museu, assegurando às futuras gerações a permanência da instituição. “Parte da futura rentabilidade do fundo será destinada ao financiamento das atividades do museu: programação cultural, despesas administrativas e investimentos", pontua o diretor de operações e finanças do Masp, Fábio Frayha. 

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Atualmente em fase de “acumulação primitiva”, até que o fundo tenha em sua carteira de ativos valor equivalente a R$ 40 milhões, não será permitido o resgate dos valores investidos, seja do montante principal ou de seus rendimentos. “A captação inicial tem sido feita com base em doações anuais de pessoas físicas, engajadas com o propósito do museu. Até o momento, temos comprometida a captação de R$ 16 milhões”, diz Frayha. 

De maneira geral, porém, o que acontece no Brasil é que nem com incentivos fiscais – possibilidade oferecida pela Lei Rouanet – os museus, institutos, artistas e associações vinculadas a eles conseguem captar os recursos necessários para executar projetos culturais e de cuidado com o patrimônio público. No Sistema de Apoio às Leis de Incentivo à Cultura (Salic), do Ministério da Cultura, é possível consultar informações sobre projetos, proponentes e incentivadores da Lei Rouanet. Lá foram registrados, até o momento, aproximadamente 6 mil propostas de projetos culturais a serem executados a partir de janeiro de 2017 e finalizados até dezembro de 2018. 

Destes, 117 continham a palavra "museu" no seu nome (como “Museu do Ipiranga em Festa 2018”) ou no nome do proponente (como a Associação dos Amigos do MON - Museu Oscar Niemeyer) e foram autorizados a fazer a captação de recursos por meio do mecenato (por incentivo fiscal, que oferece risco zero e abatimento fiscal garantido). Desses, porém, apenas 70 projetos conseguiram captar qualquer verba. O montante arrecadado até agora por eles (R$ 99,6 milhões) é de somente 23,6% do total da captação autorizada (R$ 421,7 milhões). 

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O Museu Paranaense – que é voltado ao ensino e à pesquisa, tem um acervo de cerca de 400 mil itens e é tombado e administrado pelo governo do Estado – é um exemplo das dificuldades de captação de verbas para o setor. Desde 2011, a Sociedade de Amigos do Museu Paranaense conseguiu anualmente a liberação via Lei Rouanet de projetos de, em média, R$ 1,1 milhões para a manutenção do museu. A captação de recursos, no entanto, nunca passou dos R$ 350 mil (31,8% do total) anuais. 

“O problema dos museus públicos não é a má administração dos recursos. É a falta deles”, afirma o historiador e diretor do Museu Paranaense, Renato Carneiro, que carece de recursos humanos e verbas para o cuidado com o acervo e o prédio. “No Paraná, faz mais de 30 anos que não existe nenhum concurso público na área da cultura. Em consequência disso, os funcionários que existiam estão se aposentando. A minha única museóloga vai se aposentar e não há a perspectiva de ter um concurso [para substituí-la]”. Em 2017, 60 mil pessoas visitaram o Museu Paranaense - cerca de 30% delas eram estudantes. 

Questionado sobre quais garantias de novas doações de pessoas físicas e jurídicas a criação da Abram e a regulamentação dos fundos patrimoniais trariam, o Ministério da Cultura não respondeu. A pasta afirma, ainda, que está sendo estudada uma forma para que a Lei Rouanet possa ser utilizada para a realização de doações. 

O Masp apoia a iniciativa do Minc em regulamentar os fundos patrimoniais e garantiu ter uma “importante frente de captação” junto a filantropos e portadores de grandes fortunas. O museu se recusou a informar o montante de doações recebidas no ano passado e qual parcela disso seria proveniente de pessoas físicas. 

Medidas polêmicas 

Desde que foi publicada no Diário Geral da União, no último dia 11, a medida provisória lançada pelo governo vem sendo duramente criticada por especialistas da museologia. Ao contrário da Abram, nascida de uma medida provisória, o Ibram foi criado por meio de lei, em 2009, com ampla discussão com a sociedade civil e profissionais, pensando as necessidades específicas da área. 

“Os museus têm enquadramentos funcionais e naturezas administrativas muito diversas. Existem museus públicos (vinculados à federação, ao estado e ao município), de caráter privado (sustentados por organizações não governamentais, fundações ou empresas) ou de natureza mista (como parcerias entre prefeituras e fundações)”, explica Diego Lemos Ribeiro, coordenador do curso de Museologia da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL). 

A antropóloga e professora da Escola de Museologia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio) Regina Abreu concorda. “A área de museus tem muitas perspectivas diferentes que precisam de apoios diferentes, de formas de gestão diferentes”, afirmou. “Nós estamos atônitos porque, numa canetada, o governo Michel Temer e um ministro da Cultura que nunca foi da área de museus, que não tem legitimidade nessa área, resolvem extinguir uma instituição que foi resultado de muita luta". 

O diretor do Museu Paranaense também é enfático nas críticas às mudanças executadas pelo Palácio do Planalto. “A ideia de criar essa malfadada Abram é uma excrescência total. Isso é uma cortina de fumaça do governo federal para ocultar a incapacidade dele de gerir a cultura", defende Carneiro, que acredita que o Ibram vinha fazendo um bom trabalho, que só não era melhor porque faltava dinheiro. Segundo informações do Portal da Transparência do governo federal, em 2017 as despesas previstas com o Ibram eram de R$ 171,9 milhões, mas foram efetivamente executadas R$ 137,7 milhões. Para 2018, estão previstos R$ 162,2 milhões para o instituto e, até o fechamento desta reportagem, em 20 de setembro, as despesas executadas somam R$ 89,6 milhões. 

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“O patrimônio público é uma responsabilidade pública”, aponta o professor da UFPEL. “Quando você passa essa responsabilidade da gestão para o setor privado, você está jogando a criança fora com a água da bacia. Eu não sou contra a entrada de verba privada no setor público, ela é super bem-vinda. Mas já existem instrumentos para isso". 

Os especialistas também temem que a extinção do Ibram acabe com a Política Nacional de Museus (PNM), que vinha sendo construída pelo órgão. O Minc declarou, através de sua assessoria, que a PNM será “adaptada à realidade institucional da Abram”. 

Em nota, o Ibram afirmou que a diretoria está analisando o texto da medida provisória n.º 850. “Reforçamos nossa preocupação e cuidado com a preservação das conquistas alcançadas pelo setor museal ao longo da última década”, diz o texto.

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