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Poucas coisas são mais irritantes do que aqueles vídeos com artistas reunidos cantando uma música “consciente” para salvar a Amazônia ou defender outra pauta de difícil resolução. Imagine, então, como era isso há 40 anos, com o mundo vindo do Live Aid, concerto organizado para erradicar a fome da Etiópia, e prestes a conhecer a xaroposa We Are The World (lançada a 28 de janeiro de 1985), cuja renda seria destinada a combater as mazelas africanas.
Sorte que nem todo mundo estava no mesmo barco de Michael Jackson, Lionel Richie e Quincy Jones. Em São Francisco, Califórnia, uma banda de rock iniciante já não tinha paciência para tanto bom mocismo dos popstars, nem para toda a hipocrisia reinante. O Faith No More, que só faria sucesso no Brasil na década seguinte, já com o vocalista Mike Patton substituindo o antecessor Chuck Mosley, finalizava seu álbum de estreia, que seria puxado por We Care a Lot, uma espécie de anti-canção de protesto criada para zombar daquele cenário e que nunca envelheceu um dia sequer.
A faixa já era tocada em 1984 e foi relançada com alguns versos modificados em 1987, no segundo disco do quinteto – sem que a essência do registro de 1985 fosse perdida. Numa reunião dos integrantes, o tecladista Roddy Bottum sarcasticamente surgiu com uma lista de coisas com as quais os artistas se importavam muito, entre elas, “a fome e a comida que o Live Aid comprou” e “os desastres, incêndios, inundações e as abelhas assassinas”. Ao ouvir esses futuros versos, o cantor Chuck Mosley suspirou: “é um trabalho sujo, mas alguém tem de fazê-lo”. Eureka! A estrutura de We Care a Lot estava pronta.
Guardiões da galáxia
Diz o texto do encarte da reedição desse primeiro álbum do grupo (também intitulado We Care a Lot): “São Francisco, naquela época, era como uma revolução. Tudo era acessível... Aluguel, estúdio de gravação, burritos... E todo mundo, TODO MUNDO era artista. A gente encontrou nossa turma aos poucos”. O trecho dá uma ideia da inadequação do Faith No More, uma banda que não se encaixava direito nos estilos sonoros predominantes no rock da época (não era heavy metal, não era hardcore, tampouco pós-punk) e que se lançava com uma faixa que fazia pouco caso do altruísmo de gente famosa e das dificuldades que a sociedade americana encarava.
Para se ter uma ideia de como o primeiro hit do quinteto foi visionário, a atualização da letra em 1987 trouxe os versos: “Nós nos importamos muito/ Com os apostadores, os traficantes e os geeks/ Nós nos importamos muito/ Com a heroína, o crack e o pó de anjo que chegam às ruas”. Quase meio século antes da explosão das casas de apostas ou das drogas citadas virarem epidemia mundial, elas já estavam na letra do Faith No More, numa estrofe que terminava ironicamente com “Nós nos importamos muito com vocês/ Pois nossa missão é salvar o mundo”.
Não por acaso, We Care a Lot é resgatada por games, séries e filmes de tempos em tempos, como prova de sua contemporaneidade. Um dos mais recentes usos para a canção foi dado numa das cenas principais de Guardiões da Galáxia Vol. 3, em 2023 – levando em conta que, além da letra, a base forte de baixo e bateria também faz da composição uma pedida certeira quando o intuito é elevar a emoção do momento.
O grupo nunca deixou de executar o tema em seus shows, mesmo com a mudança de vocalista. A partir da entrada de Mike Patton, um gogó privilegiado que ajudou a colocar o Faith No More nas prateleiras mais altas do rock na década de 1990, o som do quinteto foi ficando mais plural e ambicioso, mas sem nunca escantear o hit inaugural. A versão de 1987 consagrou o verso final “É uma canção suja, mas alguém tem de cantá-la”. E era isso mesmo. Contra o estado de coisas de 40 anos atrás, alguém precisava desafinar o coro dos contentes (e o cantor Chuck Mosley era bem fora do tom). Pena que, como comprova a perenidade de We Care a Lot, nada mudou.